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Artigo

03 de março de 2021

DOENÇAS OCUPACIONAIS RELACIONADAS À PANDEMIA DE COVID-19: FATORES DE RISCO E PREVENÇÃO

Maria Maeno (1)

Médica graduada pela Faculdade de Medicina da USP, pesquisadora da Fundacentro. Coordenadora do CEREST/SP de 1990 a 2006. Mestrado e Doutorado pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Membro do Coletivo de Saúde do Trabalhador do Instituto Walter Leser - FESPSP.

ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM Basis TRT2 (acervo do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região)

AGRADECIMENTOS pela revisão cuidadosa de Carlos Alberto Saldanha Salaroli, Edith Seligmann-Silva, José Carlos do Carmo e Renata Paparelli.

Introdução

Este artigo se propõe a desenvolver o tema das doenças ocupacionais relacionadas à pandemia de COVID-19, com o intuito de trazer à tona questões referentes aos seguintes aspectos:

I. Quando uma doença é ocupacional? Quais elementos devem ser considerados para que uma doença seja considerada ocupacional?

II. Quando a COVID-19 é ocupacional?

III. Quais outras doenças relacionadas à pandemia da COVID-19 podem ser ocupacionais?

IV. Há formas de prevenir essas doenças ocupacionais no contexto da pandemia de COVID-19?

 

I. Quando uma doença é ocupacional?

Das milhares de doenças codificadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – décima versão (CID-10), é possível afirmar que uma parte significativa poderia ser atribuída ao trabalho, ainda que parcialmente. O Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde do Ministério da Saúde(2), propõe uma diretriz básica de perguntas a serem feitas diante de um caso, que se na sua maioria for respondida positivamente, aponta para a existência de nexo causal entre doença e trabalho. Essas perguntas são:

  • Natureza da exposição: o agente patogênico pode ser identificado pela história ocupacional e/ou pelas informações colhidas no local de trabalho e/ou de pessoas familiarizadas com o ambiente ou local de trabalho do trabalhador?

  • Especificidade da relação causal e a força da associação causal: o agente patogênico ou o fator de risco pode estar contribuindo significativamente entre os fatores causais da doença?

  • Tipo de relação causal com o trabalho: de acordo com a Classificação de Schilling (3) : - o trabalho é considerado causa necessária (tipo I)? - o trabalho é fator de risco contributivo de doença de etiologia multicausal (tipo II)? - o trabalho é fator desencadeante ou agravante de doença preexistente (tipo III)?

  • No caso de doenças relacionadas ao trabalho, do tipo II, as outras causas, não-ocupacionais, foram devidamente analisadas e hierarquicamente consideradas em relação às causas de natureza ocupacional?

  • Grau ou intensidade da exposição: é compatível com a produção da doença? Tempo de exposição: é suficiente para produzir a doença?

  • Tempo de latência: é suficiente para que a doença se instale e manifeste?

  • Registros anteriores: existem registros quanto ao estado anterior de saúde do trabalhador? Em caso positivo, esses contribuem para o estabelecimento da relação causal entre o estado atual e o trabalho?

  • Evidências epidemiológicas: existem evidências epidemiológicas que reforçam a hipótese de relação causal entre a doença e o trabalho presente ou pregresso do trabalhador?

 

Importante lembrar o conceito da multicausalidade, difundido no campo da saúde, que dialoga com o da concausalidade na área do direito, assim expressa por diversos autores:

[...] havendo a contribuição do serviço, ainda que em menor parcela, para o resultado nocivo, impõe-se o ressarcimento legal, pouco importando seja a enfermidade de natureza degenerativa ou constitucional. (4)

[...] os acidentes ou as doenças ocupacionais podem decorrer de mais de uma causa (concausas), ligadas ou não ao trabalho desenvolvido pela vítima. Estaremos diante do nexo concausal quando, apesar da presença de fatores causais extralaborais, haja pelo menos uma causa relacionada à execução do contrato de trabalho que tenha contribuído diretamente para o acidente ou adoecimento.(5)

E por fim, a concausa pode ser “preexistente ou antecedente”, “superveniente” e “concomitante ou simultânea” (4,6,7,8)

 

Com base nesses itens, em 1999, o Ministério da Saúde publicou a lista de doenças relacionadas ao trabalho(9), elaborada em cumprimento à legislação, mais precisamente ao inciso VII, do parágrafo 3° do artigo 6° da Lei Orgânica da Saúde(10). Esta lista é apresentada de duas formas, ambas em tabelas de duas colunas. Uma das formas, dispõe, na coluna da esquerda, 27 agentes etiológicos ou fatores de risco de natureza ocupacional e elenca para cada um deles, na coluna à direita, um rol de doenças possíveis. A outra maneira de apresentação se dá a partir de doenças classificadas por grupo da CID-10, dispostas na coluna da esquerda, com os correspondentes agentes etiológicos ou fatores de risco de natureza ocupacional, elencados na coluna da direita. O mesmo conteúdo havia sido publicado como listas A e B do anexo do decreto(11) que regulamenta a Lei da Previdência Social.

 

Assim, embora a lista do Ministério da Saúde tenha o objetivo de diagnóstico para fins epidemiológicos e de prevenção e as listas da Previdência Social tenham, além dos fins epidemiológicos, o objetivo de conceder benefícios acidentários, o conteúdo das listas das duas instituições é exatamente o mesmo.

 

As listas de doenças relacionadas ao trabalho incluem 15 agravos do grupo I da CID-10, que é o de “Algumas doenças infecciosas e parasitárias”. São elas: tuberculose, carbúnculo, brucelose, leptospirose, tétano, psitacose ou ornitose ou doença dos tratadores de aves, dengue, febre amarela, hepatites virais, doença pelo vírus de imunodeficiência humana (HIV), dermatofitose e outras micoses superficiais, candidíase, paracoccidioidomicose, malária, leishmaniose cutânea ou leishmaniose cutâneo-mucosa.

 

Para finalidade ilustrativa, tome-se como exemplo a febre amarela, presente em grande quantidade em algumas regiões do país. Os trabalhadores que se expõem, em decorrência de sua atividade de trabalho, ao mosquito transmissor do vírus causador da febre amarela (Aedes aegypti), da família dos flavivírus, e contraem a doença, devem ter o reconhecimento de doença ocupacional. Outro exemplo é o da hepatite B, cujo vírus pode infectar diretamente, sem a existência de um vetor, pessoas que manipulam, sem luvas, sangue ou derivados, além de materiais contaminados.

 

II. Quando a COVID-19 é ocupacional?

Desde a declaração da existência da pandemia de COVID-19 pela Organização Mundial de Saúde em 11 de março de 2020(12), muitos conhecimentos e experiências foram acumulados pelos diferentes segmentos da ciência e da sociedade sobre esta calamidade de saúde pública que fez até o momento quase 2 milhões de mortes no mundo em menos de um ano(13). O SARS-CoV-2, agente etiológico da COVID-19, embora não totalmente conhecido, apresenta uma alta capacidade de disseminação. O vírus pode ser transmitido diretamente por meio de saliva e secreções das vias respiratórias em contatos interpessoais, secundariamente por superfícies contaminadas, manipuladas por pessoas que podem se infectar ao levar as mãos aos olhos, boca ou nariz.

 

Outra via de transmissão possível do vírus é a aérea, que se dá por aerosois menores que 5 micrômetros que permanecem por até várias horas suspensos no ar. A Organização Mundial de Saúde (OMS) atualizou, em julho, uma comunicação breve de março que tratava dos modos de transmissão do vírus. Antes a OMS admitia que a possibilidade de transmissão de aerosois existia somente em situações e procedimentos específicos envolvendo profissionais de saúde, como entubação endotraqueal, broncoscopia, posicionamento do paciente em pronação (de bruços), traqueostomia e reanimação cardiovascular(14). Em julho, a entidade internacional advertiu para a possibilidade desse meio de transmissão em ambientes mal ventilados(15). Morawska e Milton(16) (2020) publicaram um artigo em que apelam à comunidade e a entidades internacionais o reconhecimento da transmissão aérea do SARS-CoV-2 na sua disseminação, com fundamentação em vários estudos. Os diferentes meios de transmissão aliados à produção de quadros clínicos leves em um grande número de infectados, potencializam a transmissão, pois pessoas assintomáticas ou com poucos sintomas continuam a circular, frequentemente sem saberem que são infectantes.

 

O terceiro ingrediente importante para essa disseminação é a aglomeração de pessoas. Fácil compreender que as pessoas infectadas só transmitem a doença se tiverem contato com outras pessoas. Na ausência de contatantes, a cadeia de transmissão se interrompe.

 

Na ocorrência de aglomerações de pessoas, um outro ingrediente tem importância essencial na facilitação da transmissão do vírus, qual seja, a má ventilação ambiental e a inexistência ou baixa taxa de renovação do ar. Em extremos, a probabilidade de ser infectado em uma aglomeração na rua, a céu aberto, com distanciamento físico de pelo menos dois metros é muito menor do que em ambiente fechado e mal ventilado, ainda que mantidos os dois metros de distanciamento físico. Nos casos dos trabalhadores que saem para trabalhar, a exposição a situações de risco é compulsória, uma vez que é a empresa a responsável pelas condições de trabalho. Assim é com os trabalhadores da saúde, dos frigoríficos, dos serviços funerários e cemitérios, do transporte coletivo, das empresas de televisão e rádio, da indústria de petróleo, dos bancos, do teleatendimento, da coleta de lixo, dos correios e serviços de entrega, da segurança, da alimentação, dos cuidados e atividades domésticas, do setor de abastecimento de água e energia e tantos outros. Adicionalmente, o trajeto e, particularmente, o transporte coletivo são importantes pontos na cadeia de transmissão do vírus(17).

 

Nesse contexto, milhões de trabalhadores “foram convocados” pela sociedade a manter suas atividades em regime presencial, que deles precisa para continuar a dispor de energia elétrica, de água potável, de alimentos, de serviços de saúde, de serviços funerários, para citar algumas das necessidades essenciais. Dessa forma, é justo que se reconheça, para fins trabalhistas e previdenciários, o caráter ocupacional da COVID-19 quando ocorrida nessas pessoas, com exceção daquelas em que essa possibilidade possa ser descartada. É o que sustenta artigo de Maeno e Carmo(18), de maio de 2020, no qual são elencados os argumentos para essa tese, apoiada por várias entidades(19). No mesmo mês, Boletim do Centro Colaborador da Vigilância dos Agravos à Saúde do Trabalhador da Universidade Federal da Bahia (CCVISAT/UFBA) destacava a COVID-19 como uma nova doença relacionada ao trabalho(20). O Ministério Público do Trabalho em uma de suas notas técnicas, de dezembro de 2020(21), ao discorrer sobre medidas de vigilância epidemiológica nas relações de trabalho, assume a COVID-19 como uma doença profissional com base no artigo 20, inciso I, da Lei n. 8.213/91(22).

 

Ao se aplicar o conceito de concausalidade, essa tese se reforça, entendendo-se no campo da saúde como categoria II da Classificação de Schilling, sendo o trabalho fator contributivo, mas não necessário, isto é, a COVID-19, doença comunitária pode ter o trabalho como fator contributivo nos casos de regime presencial.

 

III. Quais outras doenças relacionadas à pandemia da COVID-19 podem ser ocupacionais?

Além da própria COVID-19, é preciso que se lembre que a lista nacional de doenças relacionadas ao trabalho, adotada pelo Ministério da Saúde e pela Previdência Social, já mencionada, continua válida, e contém aproximadamente 200 agravos à saúde com os respectivos agentes etiológicos ou fatores de risco ocupacionais. Além deles, é preciso que sejam lembrados outros, desvelados em estudo epidemiológico(23), cuja análise resultou na lista C do anexo II do regulamento da lei previdenciária(11), na qual constam as doenças que guardavam associação estatística com determinados ramos de atividades, representados por códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE).

 

Dentre tantos aspectos dos adoecimentos, merece destaque uma reflexão sobre questões referentes à esfera psíquica. Os sentimentos e sintomas do medo de ser infectado e de que alguém querido fique doente, a incerteza sobre a melhor forma de se prevenir e de se resguardar, a ansiedade com os sobressaltos, com as notícias falsas que abundam, a expectativa de uma vacina, o sofrimento e tristeza com mortes de amigos e colegas fazem parte da vida da maioria das pessoas nesta pandemia. Se por um lado, muitos são os alertas na literatura para que se dê atenção a esse aspecto da saúde e para que se previnam transtornos psíquicos, por outro lado, há um questionamento sobre quão esperado e normal é sofrer diante de uma mudança radical do modo de viver. Não seria uma demonstração apenas de que seres humanos sofrem quando submetidos a uma ameaça à vida como a provocada pela pandemia e à imposição de isolamento físico como a mais efetiva medida de proteção da saúde e da vida?(24) Indo além, para milhões de pessoas no Brasil, o “velho normal” se traduzia na “falta d´água em favelas e periferias, na violência recorrente (nas incursões policiais ou a ostensividade de práticas milicianas), tanto quanto a insuficiente presença de políticas públicas intersetoriais (saúde, educação, habitação) nesses locais”(25). Como a pandemia impacta na subjetividade dessas populações que já viviam sob ameaça constante e multiprismática de forma tão próxima e que se veem com dificuldades adicionais a situações-limite, tanto do ponto de vista material como do ponto de vista da violência física e psicológica, particularmente nas populações femininas e negras? Reflexões importantes sobre os efeitos de quarentenas têm sido feitas com base em experiências nacionais e internacionais(26,27,28)

 

Postas essas questões que apenas fazem vislumbrar a complexidade dos impactos da pandemia sobre a vida e a subjetividade de populações tão heterogêneas, vale lembrar que trabalhadores sob determinadas condições extremas estão sujeitos a sofrimentos que se perpetuam, evoluindo para transtornos psíquicos mais consolidados. Entre eles, a saúde mental dos profissionais de saúde é objeto de muitos estudos(20,29,30)Sem dúvida alguma, em um contexto de pandemia, são trabalhadores que sofrem as mais diferentes pressões e sobrecargas, física, mental e moral, ao viverem jornadas excessivamente prolongadas, intensas e exaustivas, forçados a um rigoroso isolamento físico, com frequência em relação à família, com medo de se contaminar e de contaminar, com medo de errar. Convivem cotidianamente com inúmeros episódios de agravamentos e mortes dos pacientes, com situações de difíceis escolhas sobretudo quando as equipes são reduzidas e os leitos e equipamentos insuficientes, com frequência, em situação de vínculos de trabalho precários, contratados de urgência em hospitais de campanha, sem direitos previdenciários, com sérias implicações em casos de seu adoecimento, particularmente quando graves.(31,32)

 

E finalmente, estudos têm apontado sequelas diversas, entre as quais, fadiga intensa e fraqueza muscular, alterações do sono, problemas de ordem cardiovascular, pulmonar, renal, dermatológica, neurológica e psíquica(33,34,35,36,37,38) nas pessoas que tenham adoecido pelo SARS-CoV-2, gravemente ou não em sua fase aguda, que podem estar relacionadas à ação do vírus por diversos mecanismos fisiopatológicos ou a situações vividas que podem redundar em várias expressões de adoecimento psíquico, em particular depressão, ansiedade e transtorno do estresse pós-traumático(39).

 

Além dos riscos adicionais ao adoecimento aos quais se submetem os trabalhadores que exercem suas atividades presencialmente, adoecidos ou não pelo SARS-CoV-2, e que foram até o momento, o foco deste texto, é importante lembrar que milhões continuam trabalhando remotamente, regime que os protege do vírus, mas não os livra dos demais aspectos agressivos à saúde, existentes no trabalho, e que podem se exacerbar neste período em que há maiores dificuldades de organização e defesa contra abusos por parte das empresas e de seus gestores. Improvisações dos espaços físicos domésticos, problemas relacionados aos equipamentos e internet, gastos adicionais dos trabalhadores para adequar mobiliário, profundas mudanças da organização e dinâmica familiar, particularmente quando há crianças ou outros dependentes, têm sido objeto de estudos amplamente divulgados pela imprensa. Em estudo que alcançou trabalhadores em trabalho remoto, principalmente de Curitiba, em sua maioria do setor público e mulheres, parcela significativa dos estudados referiu que havia aumentado as jornadas de trabalho, que estava trabalhando 6 a 7 dias por semana e que havia aumentado o ritmo de trabalho. Dos que tinham metas a serem atingidas, um quarto referiu que no trabalho remoto estas haviam sofrido um aumento(40). O outro aspecto que não pode deixar de ser mencionado no trabalho remoto é a exclusão do teletrabalho da regulamentação da jornada (artigo 62 da nova CLT(41), o que na prática comporta extensas horas de trabalho em busca do cumprimento de metas ou dos prazos para entregas de produtos. Caso venha a sofrer de dores na coluna, de tendinites e similares ou mesmo de alterações de sono, de ansiedade, de depressão, de alcoolismo, entre outros transtornos psíquicos, ou mesmo de agravamentos de doenças crônicas por sedentarismo ou falta de acompanhamento médico, poderá ter os agravos reconhecidos como ocupacionais? Considerando que o artigo 75-E da CLT, diz que o “empregador deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho” e que o “empregado deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador”, não seria indevidamente alegado que o adoecimento teria ocorrido pelo não cumprimento das orientações fornecidas? A efetividade das precauções dependeria de condições reais para a criação de ambientes físicos adequados em domicílios geralmente de dimensões reduzidas, cujos compartimentos já têm destinação definida. E adicionalmente, seria essencial a revisão de metas e prazos, de forma a contemplarem a diversidade de condições de vida dos trabalhadores, em situação permanente de intersecção entre o trabalho e o ambiente doméstico e dinâmica familiar. Seria possível esse pacto no âmbito das relações de trabalho?

 

IV. Há formas de prevenir essas doenças ocupacionais no contexto da pandemia de COVID-19?

Como se viu, embora a COVID-19 possa ser relacionada ao trabalho quando o regime laboral é presencial ou exija o contato físico com pessoas, outras doenças já reconhecidas pelo Ministério da Saúde e pela Previdência Social no seu caráter ocupacional, devem ser objeto de nossa preocupação, pois podem surgir ou se agravar durante a pandemia. No tocante à COVID-19, é importante lembrar que o SARSCoV-2 é o agente etiológico necessário, mas vários fatores e aspectos podem ser considerados como facilitadores da transmissão viral e consequente infecção, quais sejam, proximidade física, ambientes mal ventilados e sem renovação de ar, baixa umidade ambiental, ausência ou inadequação de máscaras, falta de condições e tempo para higienização, seja dos objetos e equipamentos seja das pessoas, jornadas e organização do trabalho que não contemplem a diversidade das atividades e das pessoas.

 

Especificamente em relação aos ambientes de trabalho, tomam-se emprestadas as recomendações de outro artigo(42).

Todos os locais de trabalho devem ter um protocolo, elaborado com a participação de trabalhadores, devendo ser revisto periodicamente por um comitê misto, de representantes da empresa e de trabalhadores, de acordo com as necessidades e o avanço de conhecimento sobre o vírus. A participação ativa dos trabalhadores, que conhecem a atividade real de trabalho nos seus detalhes, contribui significativamente para o sucesso de medidas preventivas. As informações e orientações devem ser de amplo conhecimento de todos e contemplar vários aspectos, dentre os quais:

a) Edificações e veículos de transporte de uso comum (trens, ônibus, vans): mudanças estruturais devem ser feitas para que haja uma adequada ventilação, com taxa de renovação de ar dimensionada ao volume, do ambiente e aos ocupantes, disposição de postos de trabalho distantes pelo menos 2 metros um do outro, áreas de circulação livres, entre outros aspectos;

b) Ventilação (fluxo de ar externo para dentro de um edifício e veículos e suas saídas): deve ser adequada para remover e diluir poluentes e agentes infecciosos presentes e para manter adequada a umidade do ar. A ventilação deve ser eficiente em termos de energia e organizada de modo a não degradar a qualidade do ar interno ou o clima e não causar nenhum dano aos ocupantes ou ao edifício;

c) Ventilação adequada: pode ser natural ou com auxílio de uso de equipamentos mecânicos ou mista, e deve ser projetada em conformidade com as dimensões do ambiente e número de pessoas fixas e flutuantes no local;

d) Melhoria do ar ambiente: em cidades, regiões e bairros com poluentes no ar cujas concentrações ultrapassem os limites máximos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), empresas devem observar que o ar externo captado deve ser filtrado para material particulado fino;

e) Melhoria da ventilação: o uso de ventilação predial mecânica, com condicionamento de ar, deve também levar em conta o impacto na umidade relativa do ar;

f) Manutenção da umidade ambiental: a umidade relativa do ar deve ser mantida, se necessário, com umidificação artificial, ao redor de 60%; 

g) Monitoramento coletivo: as informações sobre temperatura, umidade do ar e taxa de renovação do ar devem ser disponibilizadas em monitores que possam ser visualizados em tempo real por todos os usuários do ambiente;

h) Monitoramento individual: todos os trabalhadores devem ser esclarecidos sobre a importância do aparecimento de sintomas compatíveis com COVID-19, sendo-lhes garantido o isolamento físico devidamente remunerado, assim como a confirmação diagnóstica por meio do teste de identificação do vírus (RT-PCR ou similar), no período de 3 a 7 dias desde o aparecimento do quadro clínico. Enquanto não houver o devido esclarecimento, o isolamento deve ser mantido, assim como deve-se proceder à busca ativa de contatantes no trabalho e nos domicílios. Esse monitoramento deve se estender aos familiares;

i) Para trabalhadores assintomáticos e sem história de contato com pessoas doentes por COVID-19 ou suspeitas de infecção é importante que se façam testagens de detecção do vírus (RTPCR ou similar) semanalmente. O desenho de amostragem tem que obedecer a critérios como setores e mapeamento da movimentação dos trabalhadores, de forma que se contemple 25% do contingente total a cada semana. A cada mês, terse-ia um quadro epidemiológico da empresa. O Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) deve apresentar um plano de vigilância em saúde, a ser submetido a órgãos de vigilânica do SUS, já que o interior das empresas é território de atuação no âmbito da saúde coletiva;

j) Instalação de aparatos e dispositivos de isolamento físico em áreas de maior circulação: anteparos de acrílicos para postos de recepção, portarias, caixas, guaritas, etc;

k) Sinalização: as áreas devem ser sinalizadas de maneira que se evitem aglomerações, com marcações no piso e cartazes de alerta em elevadores, sanitário, portarias e demais áreas comuns;

l) Reorganização do trabalho e jornadas: essas medidas devem ser adotadas, seja com redução do tempo de permanência e/ ou alternância de equipes, de maneira que a necessidade de movimentação dos trabalhadores seja restrita e aglomerações sejam evitadas no trajeto, na entrada, na saída e nas áreas comuns;

m) Máquinas, equipamentos e instrumentos de trabalho: devem ser higienizados com álcool 70 sempre que haja troca de usuário e o compartilhamento deve ser evitado sempre que possível;

n) Equipamentos de proteção pessoal(43): kits de máscaras devem ser providenciados para todos os trabalhadores em número suficiente para que trocas possam ser feitas de 4 em 4 horas ou sempre que ficarem úmidas ou sujas. Protetores faciais devem ser providenciados para os trabalhadores de portaria ou em outras situações de contato com o público.

 

Por ora, conclui-se esta síntese de alguns aspectos relacionados às doenças ocupacionais no contexto da pandemia, na expectativa de que as reflexões subisidiem os atores sociais no processo de superação deste momento crucial, optando-se pela proteção das vidas e da saúde coletiva, em particular dos que foram colocados na linha de frente desta batalha, cujo resultado dependerá da capacidade de se construir alternativas como espécie humana.

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