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DOSSIÊ COVID NO TRABALHO

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Depois a cabeça virou névoa

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Neli Gamboa

assistente jurídico

São Paulo,  46 anos

  Neli Gamboa, 46 anos, assistente jurídico no Tribunal de Justiça de São Paulo, trabalhou o tempo todo em home office, mas pegou covid ainda assim. A sogra adoeceu e o marido a acompanhou em consultas e hospital, e acabou se infectando. A família de Neli sofreu várias perdas – uma prima de sua mãe faleceu pela doença no mesmo dia em que Neli soube que estava infectada, 22 de março de 2021. “Ela já tinha perdido o marido e o pai. Foram cinco pessoas na família”, lamenta. Neli ficou assintomática na primeira semana, mas na segunda semana começou a sentir dores no corpo e dificuldades cognitivas que persistem até hoje. No relato abaixo fica evidente sua angústia com a dificuldade em obter um diagnóstico preciso ou um tratamento eficaz.

  A psicóloga Rosimeire Gonçalves, que também sofre com sequelas neurológicas da covid, tem a mesma queixa.

  O relato de Neli é franco e emocionante, em virtude da dura experiência familiar e também, por uma sensibilidade natural que ela tem expressado muito bem em ilustrações, como a que acompanha a chamada de capa para este relato, um autorretrato emocional, por assim dizer. “Estava procurando artigos e textos sobre o assunto e encontrei uma ilustração sobre o que o artigo chamava de névoa mental deixada pelo vírus. Me identifiquei imediatamente, por isso copiei”, conta. Não se trata de uma cópia, no entanto. Neli coloca os signos da névoa em um autorretrato, produzindo a mais pura arte pop. Segue o relato. 

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SEQUELAS NEUROLÓGICAS ATINGEM  1 EM CADA 3

Na mesma época em que Neli estava doente, a revista especializada The Lancet Psychiatry publicou o primeiro grande estudo a respeito de sequelas neurológicas ou psiquiátricas da covid, mostrando que uma em cada três pessoas que superam a covid-19 são diagnosticadas com problemas neurológicos ou psiquiátricos nos seis meses posteriores à infecção. Os diagnósticos mais frequentes apontados foram  ansiedade (17%) e alterações de humor (14%). LEIA MAIS AQUI

  “Eu recebi o resultado positivo do meu teste no dia 22 de março (de 2021). Meu marido, que estava doente desde o dia 18/03, teve 50% do pulmão comprometido. Neste momento eu estava assintomática e consegui ficar bem forte, apesar das perdas que tivemos: cinco pessoas da nossa família faleceram por COVID. Meu marido perdeu uma prima direta logo depois de testar positivo. Exatos trinta dias depois, ele perdeu outro primo, irmão dessa prima. Este último falecimento me deixou muito abalada, pois éramos da mesma idade e fazíamos aniversário com nove dias de diferença. Fiquei pensando qual a razão dele ter falecido e eu ter sobrevivido.

  Estava vivendo todas essas coisas quando meu marido começou a piorar. O médico chegou a querer internar porque a saturação caiu muito, o que me deixou desesperada, porque pensei que nunca mais iria vê-lo. Felizmente a saturação voltou a subir e pude leva-lo para casa. Fiz tudo o que me foi orientado e a saturação lentamente foi voltando. Ele se recuperou totalmente.

  Em primeiro de abril, primeiro dia em que ele ficou bem, eu caí. Muita dor no corpo e começaram os problemas neurológicos. Não conseguia ver filme legendado porque não entendia o sentido das palavras. Perdi olfato e paladar, que voltaram em dois dias. Pude ficar afastada do trabalho por um tempo – tive 15 dias de licença covid, mas precisei tirar mais 15 dias de licença prêmio para me recuperar. Quando voltei, ainda estava com uma situação muito ruim de leitura – demoro para entender o que estou lendo, não tenho muito foco e minha memória está muito ruim até hoje.

  Procurei um neurologista, mas os exames não mostraram nada. Fiz testes no consultório e com os números fui muito bem; mas quando me pediu para falar nomes de animais, eu não conseguia lembrar de nenhum no início. Deveria ter falado 26 nomes em um minuto, mas só consegui 14! Depois deveria dizer palavras com a letra “P” também por um minuto – neste fui pior: saíram só 12 palavras, quando a média de referência é 27. Ficou claro que atingiu a parte cognitiva relacionada a linguagem e o médico me disse que tinha outros relatos semelhantes. Garantiu que era uma fase apenas, que ia passar...

  Melhorou, claro, mas... eu era uma pessoa que lia bastante e depois da covid não consegui ler nenhum livro. Meu trabalho basicamente é ler o tempo inteiro, assim, minha produção teve uma queda de cerca de 50% nos piores dias. Vivo numa oscilação. Tem semanas horríveis – minha compreensão diminuiu e sinto muito cansaço. Outras são mais leves. Nunca tive febre durante a doença, ao contrário. A temperatura caiu e chegou a 33.8 (a média da minha temperatura corporal era na casa dos 34 graus). Eu suava muito, parece que o corpo quer esfriar. Banho quente piorava – provocava suador. O nosso corpo pode ter duas reações ao vírus: uma é a febre para expulsar e a outra é a hipotermia, que foi o meu caso.

  Da hipotermia sobrou outra sequela: chega o final do dia, não posso ficar de manga curta. Sinto os ossos gelarem por dentro da mão até o cotovelo. Essa era uma sensação que eu tinha e que persiste nessa parte do braço até hoje. Tenho que dormir com blusa de manga comprida, mesmo que não faça frio algum. Então são duas sequelas que tenho de lidar. Com relação a confusão mental, os neurologistas disseram que poderiam durar até seis meses, mas esse tempo já se foi e não passou. O psiquiatra pediu agora um eletroencefalograma com mapeamento cerebral, uma avaliação neuropsicológica, para ver se não existe alguma uma outra causa. E o congelamento do braço, que não sei como tratar.

  No meu trabalho, além da dificuldade com as sequelas, ainda houve um grande aumento de processos durante a pandemia. Tive ajuda de uma colega durante o afastamento, pois, quando eu me afasto, ninguém faz o meu serviço que acumula. Essa colega conseguiu fazer apenas uma parte inicial, mas me ajudou muito. No meu setor, teve outra funcionária que também teve covid e que, ainda hoje, tem sequelas e se sente muito cansada. Atualmente tenho filas de processos para análise e nem sei por onde começar a resolver.

  Somos em seis pessoas no meu setor e todas me apoiam bastante, mas é uma iniciativa espontânea e pessoal. O Tribunal, como instituição, não fez nenhum monitoramento. No Tribunal de Justiça são vários os funcionários afastados com sequelas de covid e dois funcionários faleceram por terem se contaminado no retorno ao trabalho presencial. O monitoramento que existe é de produtividade e o nosso departamento está obviamente com problemas – fizemos um relatório informando a situação e a justificativa foi aceita por hora, mas ninguém do Tribunal procurou formal ou informalmente, saber algo a respeito. Não existe essa preocupação com elemento humano.

  O que me salvou nestes tempos foi o desenho. É a única coisa que me animou, e ainda anima, nesta fase difícil que eu espero que passe logo."

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