INSTITUTO
WALTER LESER
Saúde coletiva & cidadania
MOVIMENTO SINDICAL
TRABALHO, SINDICATOS E PROTEÇÃO SOCIAL NA PANDEMIA DE 2020: NOTAS SOBRE O CASO BRASILEIRO*
Ricardo Framil Filho
Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo
framilfilho@gmail.com
Leonardo Mello e Silva
Departamento de Sociologia da Universidadede São Paulo
leogmsilva@hotmail.com
*Publicado originalmente na revista Ciências Sociais Unisinos, edição de maio/junho 2020
Resumo
O artigo analisa as políticas emergenciais de proteção social criadas em resposta à crise da COVID-19 no Brasil – o Benefício Emergencial direcionado ao trabalho formal regulado pela CLT e o Auxílio Emergencial concedido aos trabalhadores “informais”. Em particular, trata dos sindicatos e das definições de “trabalho” e “trabalhadores” que orientam esses programas sociais. A análise tira proveito de evidências qualitativas e quantitativas para explorar o papel dos sindicatos e da auto-organização dos trabalhadores na conformação
da proteção social no contexto da pandemia.
Em meio à crise política, econômica e social detonada globalmente pela pandemia da COVID-19 no primeiro semestre de 2020, viralizou nas redes sociais no Brasil a imagem de um telejornal em que uma advogada trabalhista responde a perguntas enviadas pelo público. Um trabalhador relata o seguinte: “Fui dispensado
da empresa e fomos fazer acerto no sindicato. O patrão quis me pagar com um cheque para 45 dias. O sindicato não aceitou, mas eu quis. Assinei um termo de responsabilidade e adivinha? O cheque não tem fundo. O que eu faço?”. A imagem já havia circulado em outubro de 2019, mas seu reaparecimento recente ilustra como os deslocamentos provocados pela pandemia intensificaram de forma dramática elementos de crise que se acumularam no país durante a década de 2010 no que diz respeito à proteção social ao trabalho. De fato, a situação colocou o trabalho no centro do debate público no Brasil e em outros países. Afinal, trabalhar durante a pandemia implica riscos significativos, mas, ao mesmo tempo, a maior parte da população mundial tem no trabalho a sua fonte de renda.
O significado dos acontecimentos recentes para os sindicatos difícil de avaliar. Por um lado, a centralidade repentina das questões trabalhistas fez com que o sindicalismo voltasse à cena. O jornal britânico The Economist, que não pode ser acusado de ter um viés trabalhista, anunciou recentemente que “os sindicatos de trabalhadores estão de volta”, notando que “a questão da saúde e segurança no trabalho, de interesse marginal para a maioria das pessoas na maior parte do tempo, está repentinamente na mente de todos” (The Economist, 2020). Por outro, as últimas décadas colocaram em xeque a capacidade de adaptação dos sindicatos a transformações de relevo, uma “crise” cuja maior evidência foi a queda nas taxas de sindicalização em diferentes países (Visser, 2019). Ainda que nem sempre tenha sido aceita a tese do declínio da centralidade do trabalho nas sociedades contemporâneas, o debate sobre o futuro dos sindicatos e das forças sociais do trabalho em geral tem sido dominado pela reflexão acerca da possibilidade ou impossibilidade de uma “revitalização” capaz de recuperar a relevância passada, em particular no que diz respeito à organização e representação de novos grupos e categorias de trabalhadores (Van der Linden, 2016).
O Brasil ocupou uma posição peculiar em relação a essas tendências globais. Enquanto nos países centrais os sindicatos foram colocados na defensiva desde os anos 1980 por uma guinada liberal e anti-sindical liderada pelos governos de Ronald Reagan nos Estados Unidos e de Margaret Thatcher no Reino Unido, o que abriu o caminho para o “Consenso de Washington” nos anos 1990, no Brasil os sindicatos foram protagonistas de importantes movimentos sociais que, na esteira da agitação trabalhista do “novo sindicalismo” a partir do fim dos anos 1970, influenciaram decisivamente o processo de redemocratização do país. De fato, o caso brasileiro foi um exemplo importante para o argumento de que o “fatalismo” acerca da crise do trabalho a partir dos anos 1980 seria geograficamente enviesado, isto é, essa análise teria generalizado tendências do centro da economia global, ignorando movimentos de trabalhadores surgidos na Ásia, na África e na América Latina (Silver, 2005). Ao longo dos anos 1990, porém, o movimento sindical brasileiro enfrentou de forma mais direta os impactos das transformações globais: abertura econômica, medidas liberalizantes e transformações tecnológico-organizacionais nas unidades de produção limitaram a efetivação do horizonte de proteção social consagrado pela Constituição de 1988. No geral, os sindicatos perderam relevância durante a “década neoliberal” (Cardoso, 2003), tendência apenas parcialmente revertida pela influência sindical conquistada com os governos do Partido dos Trabalhadores
até meados dos anos 2010, período em que a flexibilização do trabalho continuou a avançar em meio às melhorias na distribuição de renda (Ladosky et al., 2014). As vicissitudes políticas do que se seguiu (Governos Temer e, depois, Bolsonaro) determinaram um ataque e um desmonte determinados às “conquistas” históricas na área laboral.
Neste artigo, analisamos as políticas emergenciais de proteção social criadas em resposta à crise da COVID-19 no Brasil – o Benefício Emergencial direcionado ao trabalho formal regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o Auxílio Emergencial concedido aos trabalhadores “informais”. Estamos preocupados, em específico, com o papel dos sindicatos e com as definições de “trabalho” e “trabalhadores” que orientam esses programas. A primeira seção apresenta os antecedentes relevantes; em seguida, discutimos o papel da negociação coletiva na implementação da Medida Provisória 936, em que a exigência da representação sindical para a validação de acordos individuais foi polêmica importante. A terceira seção, por sua vez, discute o Auxílio Emergencial como contraponto a essa experiência, mostrando como o trabalho foi questão central também na esfera da assistência social. Finalmente, um balanço final reflete sobre o papel dos sindicatos e da auto-organização dos trabalhadores na conformação da proteção social no país.
Antecedentes: os sindicatos brasileiros nas cordas
Os contornos formais das relações industriais brasileiras, além de outras dimensões da proteção social ao trabalho no país, foram estabelecidos pela Consolidação das Leis do Trabalho durante o governo de Getúlio Vargas nos anos 1940. No que diz respeito à estrutura sindical, os elementos centrais foram a “unicidade sindical”, princípio que estabelece que apenas um sindicato representará determinada categoria profissional em uma base territorial delimitada (que pode ser desagregada até um único município); o controle estatal da concessão de prerrogativas de representação sindical (por meio da “carta sindical”); a representatividade presumida e automática dos sindicatos oficialmente reconhecidos, que recebem recursos da “Contribuição Sindical”, popularmente conhecida como “imposto sindical”, recolhida obrigatoriamente pelos trabalhadores, estejam associados voluntariamente ao sindicato ou não. Ao longo da história, a relação dos sindicalistas com essa estrutura foi ambígua, tendo oscilado entre o apego e a crítica em diferentes períodos, mas o sistema “corporativista” foi notavelmente resiliente; do interregno democrático após o Estado Novo, passando pelo regime militar, até a redemocratização, seus elementos fundamentais foram preservados até recentemente. O “imposto sindical”, em particular, garantiu uma fonte de recursos permanente para o movimento sindical brasileiro, mas fortaleceu burocracias sindicais locais conservadoras na defesa de suas prerrogativas.
No geral, prevalece uma representação sindical geograficamente fragmentada, segmentada por profissões e regulada pelo Estado. A legislação restritiva que explica essa situação não impediu que os sindicatos se afirmassem como importantes agentes políticos na história brasileira do último século, ainda que para isso as formas oficiais de organização sindical tenham sido abertamente desafiadas em diferentes períodos. Ademais, a despeito de que a tendência contrária tenha prevalecido em determinados momentos, o escopo da proteção social orientada pela lógica desse sistema foi em geral ampliado ao longo do tempo. Podemos mencionar, como exemplos de avanços cumulativos, o reconhecimento constitucional do direito de greve e a inclusão progressiva de trabalhadores rurais e domésticos (Campos, 2013). Por outro lado, é preciso reconhecer que o alcance jamais foi universal, isto é, a proteção social ao trabalho no Brasil delimitou desde cedo um conjunto de “protegidos”, trabalhadores associados ao trabalho “formal” e representados por sindicatos oficialmente reconhecidos, por um lado, e uma massa de trabalhadores “informais”, desprotegidos ou, quando muito, cobertos por uma proteção social mais precária em relação ao trabalho, por outro.
Após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, importantes mudanças foram introduzidas. No que diz respeito às estruturas de representação sindical, a principal delas foi determinada pela reforma trabalhista conduzida por Michel Temer em 2017 que, como apontou Oliveira (2018: 334), significou “a maior transformação já feita nos fundamentos do sistema Vargas”. Entre outras medidas, a reforma acabou com o “imposto sindical”. Paradoxalmente, a materialização do que até então havia sido uma demanda histórica das parcelas mais combativas do movimento sindical brasileiro fragilizou consideravelmente os sindicatos, que passaram a enfrentar uma grave crise financeira. Mais do que os benefícios ou malefícios da contribuição compulsória, o elemento central foi a correlação de forças políticas – os sindicatos pouco puderam influenciar a reforma. O fim do imposto sindical certamente teria consequências muito diversas se tivesse sido aprovado durante o primeiro governo Lula, por exemplo, quando essa foi uma sugestão dos próprios sindicatos ao Fórum Nacional do Trabalho, órgão tripartite cujas propostas, todavia, jamais foram transformadas em lei (Almeida, 2007). Na reforma de Temer, por outro lado, o fim do “imposto sindical” representou uma medida unilateral que, retirando subitamente recursos financeiros dos sindicatos como parte de uma ofensiva mais ampla contra a proteção social ao trabalho, deixou intacto o restante do sistema corporativo, isto é, preservou as restrições legais ao exercício da liberdade sindical.(1)
Desde então, diferentes alternativas de financiamento foram buscadas, “arremedos” a um sistema corporativo que se tornou desequilibrado em detrimento do polo trabalhista. Medidas como a “contribuição negocial” (que estabelece uma contrapartida condicionada à existência de negociação coletiva) e a aprovação do desconto por assembleias de categoria passaram a ser introduzidas nos acordos e convenções coletivas pelos sindicatos, o que produziu controvérsias jurídicas diversas. Em uma das primeiras medidas de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro editou Medida Provisória que bloqueou o desconto da contribuição sindical da folha salarial pelas empresas, exigindo que o pagamento fosse feito por meio de boletos bancários, medida que perdeu a validade algum tempo depois. O Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, tem também limitado o alcance dessas alternativas, como em decisão recente da ministra Carmen Lúcia, datada de março de 2020, que proibiu o desconto automático de contribuição sindical aprovada em assembleia. Em suma, o movimento sindical brasileiro tem buscado alternativas para sobreviver, mas, por ora, não foi capaz impor uma agenda própria. A associação voluntária, é claro, continua a ser uma alternativa influente, mas, diante da regulação estatal das bases de representação e do contexto político desfavorável, tem prevalecido uma política defensiva.
Os sindicatos e o Benefício Emergencial
As primeiras medidas estatais de proteção social durante a pandemia da COVID-19 se dirigiram aos trabalhadores assalariados cobertos pela CLT, isto é, aqueles com vínculo trabalhista formal tal como usualmente concebido. O estado de calamidade pública foi decretado pelo Legislativo em 20 de março de 2020 e, dois dias depois, o Governo Federal editou a Medida Provisória 927, que dispôs sobre “as medidas trabalhistas que poderão ser adotadas pelos empregadores para preservação do emprego e da renda” diante da crise do coronavírus, e flexibilizou os critérios para a adoção de mecanismos diversos, como o teletrabalho, as férias coletivas, individuais e feriados, o banco de horas etc. A medida causou grande polêmica porque previa a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses sem o pagamento de salários, com a manutenção apenas dos benefícios, como o vale-alimentação. O artigo relevante foi revogado no dia seguinte e o Ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou que a medida “jamais foi considerada” e que ela teria decorrido de um “erro de redação” (Sardinha, 2020).
No dia primeiro de abril, uma nova Medida Provisória, a MP 936, criou o Programa Emergencial de manutenção do Emprego e da Renda. Os empregadores ficaram autorizados a reduzir as jornadas de trabalho com redução proporcional dos salários (em 25%, 50% ou 70%) ou a suspender os contratos por até 60 dias, com a manutenção dos benefícios; a União, por sua vez, assumiu a responsabilidade pela mitigação das perdas salariais dos trabalhadores afetados por meio do pagamento de um Benefício Emergencial (ou BEm, que não deve ser confundido com o Auxílio Emergencial, do qual trataremos mais à frente). O valor do benefício corresponde, no caso de suspensão dos contratos, ao valor do seguro-desemprego que seria recebido em caso de demissão e, no caso da redução, ao valor proporcional às horas de trabalho perdidas. O teto do seguro-desemprego é de R$ 1.813,03, o que implica maiores perdas para os altos salários, enquanto os salários mais baixos preservam em maior proporção a remuneração mensal líquida. As perdas salariais são mais expressivas no caso de contratos suspensos em empresas de menor porte, com faturamento inferior a R$ 4,8 milhões em 2019, uma vez que as empresas com faturamento superior ficaram obrigadas a pagar, durante a suspensão contratual, uma “ajuda compensatória” no valor de 30% do salário (base de cálculo que costuma ser maior do que o valor do seguro-desemprego, que determina os pagamentos feitos pela União). Além disso, os trabalhadores têm garantida a estabilidade no emprego durante a aplicação das medidas e, posteriormente, por período adicional equivalente. No caso da rescisão do contrato sob essas condições, a MP prevê uma indenização. A tabela 1 apresenta, como exemplos ilustrativos, a remuneração mensal garantida pelo programa a trabalhadores com diferentes salários.
Controvérsia duradoura foi provocada pelo fato de que a MP 927 afastou a negociação coletiva com participação dos sindicatos, exigindo apenas acordos individuais, o que foi reproduzido, com algumas alterações, pela MP 936. A segunda medida estabeleceu que os acordos poderiam ser coletivos ou individuais
para trabalhadores que recebem menos do que R$ 3.135, isto é, aqueles com salários de até 3 salários mínimos, que concentram grande parte dos vínculos trabalhistas da CLT2, ou “portadores de diploma de nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”, o que equivale a cerca de R$12.200. No caso da redução de jornada em 25%, os acordos individuais foram autorizados para qualquer trabalhador. Na prática, foram liberados os acordos individuais para os menores e maiores salários, o que restringiu muito o papel dos sindicatos na implementação do programa.
Com pouca influência sobre o Congresso Nacional e praticamente sem interlocução com o Governo Federal, nos últimos anos os sindicatos têm apostado na judicialização de disputas sobre prerrogativas sindicais ameaçadas por reformas ou atos do Executivo, o que frequentemente é feito de forma propositalmente fragmentada para afastar o risco de que determinações gerais do STF bloqueiem a possibilidade de conquistar decisões favoráveis em instâncias inferiores. No caso da MP 936, porém, o caráter de urgência e o fato de que a medida tocou em uma questão cara aos sindicatos (a “irredutibilidade do salário” prevista no Artigo 7, Inciso VI da Constituição, que veta a diminuição dos salários sem previsão em acordo ou convenção coletiva) fez com que Ações Diretas de Inconstitucionalidade diversas fossem ajuizadas contra a medida.
No dia 6 de abril, o ministro Ricardo Lewandowski, por meio de decisão monocrática, estabeleceu que o sindicato deveria ser comunicado sobre a assinatura de acordos individuais “para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes” (ADI 6363). A decisão foi objeto de interpretações divergentes, mas o próprio website do Supremo Tribunal Federal parecia confirmar o entendimento de que a participação sindical seria exigida, publicando notícia com a seguinte manchete: “Redução salarial por acordo individual só terá efeito se validada por sindicatos de trabalhadores” (PORTAL STF, 2020). Cerca de uma semana depois, o ministro rejeitou recurso da Advocacia Geral da União sobre a questão, mas esclareceu a decisão e determinou que os acordos teriam validade imediata, ainda que tenha reforçado a exigência de que os sindicatos fossem notificados e garantido a prevalência de acordos coletivos negociados posteriormente.
Finalmente, no dia 17, o plenário da Corte, por 7 votos contra 3, cassou a liminar concedida por Lewandowski, restaurando o teor original da MP, o que foi justificado pela excepcionalidade da situação de pandemia, que impediria que os sindicatos negociassem acordos coletivos com a agilidade necessária. As conturbadas primeiras semanas de abril trouxeram à tona as vulnerabilidades correntes dos sindicatos no Brasil. Durante o curto período em que predominou o entendimento de que a anuência sindical seria necessária para validar os acordos previstos na MP 936, os sindicatos foram acusados de “chantagear” as empresas com a cobrança de taxas e outros mecanismos de financiamento sindical; circulou, por exemplo, a reprodução de um modelo apócrifo de acordo coletivo sobre a MP 936 na qual havia a previsão de que os sindicatos recolheriam 4% dos salários dos trabalhadores. Os sindicatos, por outro lado, defenderam o papel da negociação coletiva na implementação do programa. A IndustriALL Global Union, sindicato global das indústrias manufatureiras, por exemplo, valorizou os acordos assinados no Brasil e considerou que eles “oferecem uma solução satisfatória para a vasta maioria dos trabalhadores” (IndustriALL, 2020).
Tabela 1 - Valor da Remuneração (Salário, Benefício e Ajuda Compensatória)
Fonte: Elaboração própria.
A negociação coletiva no âmbito da MP 936
Nesta seção, analisamos os acordos coletivos no Sistema Mediador, plataforma criada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), hoje uma secretaria do Ministério da Economia. Essa base reúne um valioso material sobre a negociação coletiva no país, mas não oferece um banco de dados estatísticos; os acordos são disponibilizados na íntegra. Nesse sentido, extraímos informações de acordos e convenções coletivas registrados no período (de 1º de abril a 30 de junho) e que trataram diretamente da MP 936, um total de 2690 documentos. Os acordos coletivos, que são assinados diretamente entre empresas e representantes sindicais, são particularmente interessantes porque revelam de que forma os sindicatos buscaram impor condições adicionais a companhias específicas.
A análise dos acordos assinados no âmbito da MP 936 revela que apenas 15% deles contém cláusulas relativas ao financiamento dos sindicatos, o que mostra que a tese da “chantagem” carece de fundamentação, principalmente quando se leva em conta que a exigência da manifestação individual do trabalhador é frequentemente prevista de forma explícita (a contribuição compulsória, afinal, tem sido rejeitada pelo STF), isto é, o desconto em folha não é automático, mas configura, nesses casos, apenas uma maneira de facilitar o pagamento das mensalidades sindicais por parte dos trabalhadores interessados. Essas cláusulas, ademais, têm sido praxe nos acordos assinados por certos sindicatos já há algum tempo, o que indica mais uma estratégia de sobrevivência financeira do que o fortalecimento de um poder burocrático como resultado da crise sanitária. De todo modo, essa questão apareceu apenas marginalmente nos acordos vinculados à MP 936. Mesmo depois que o STF decidiu pela não obrigatoriedade da presença sindical na validação dos acordos, dessa maneira, a negociação coletiva continuou a ser buscada e tratou, principalmente, de qualificar as condições previstas pelo programa e, além disso, de influenciar outras dimensões do combate à COVID-19 no cotidiano dos locais de trabalho.
A análise das respostas sindicais em desenvolvimento indica que os sindicatos negociaram a ampliação da proteção social para além do que exige a legislação, mesmo diante de um cenário excepcional e pandêmico, ainda que os exemplos aqui elencados sejam mobilizados para formular hipóteses e mapear possibilidades, isto é, o impacto final da crise só poderá ser medido com segurança no futuro. Uma dificuldade imediata dos sindicatos para a negociação de acordos foi a exigência legal da realização de assembleias, uma vez que as recomendações sobre o isolamento social durante a pandemia dificultaram os encontros presenciais entre trabalhadores. Ciente de que essa exigência atrapalharia a negociação coletiva no período, ainda em março a Secretaria de Relações Trabalhistas (SRT) do Ministério da Economia enviou ofício para as Superintendências Regionais do Trabalho com a orientação de que elas “flexibilizassem” a exigência de ata de assembleia para o registro de acordos. Ainda assim, os sindicatos buscaram alternativas para contactar os trabalhadores. Em alguns acordos registrados no período, as atas de assembleias foram substituídas por fotos de tela de celulares que registram a realização de assembleias virtuais por aplicativos de mensagem instantânea, como o WhatsApp. Outros sindicatos adotaram métodos mais profissionalizados, realizando votações por sistemas online. Um sindicato metalúrgico no interior de São Paulo, por exemplo, realizou assembleias virtuais em cada uma das principais empresas de sua base de representação (um total de 10 companhias) para aprovar ou não a adesão ao programa. Em uma tradicional produtora de autopeças, mais de mil metalúrgicos participaram. Isso mostra que os sindicatos podem incorporar ao seu cotidiano o admirável mundo novo das tecnologias de informação e comunicação, típicas de uma “sociedade em rede” cuja afinidade com a organização sindical tradicional tem sido colocada em dúvida já há algum tempo (Castells, 1999).
No que diz respeito ao conteúdo dos acordos, destaca-se, sobretudo, o esforço por parte de alguns sindicatos para complementar a Medida Provisória, ampliando ou detalhando o alcance de certas medidas, mas também a tentativa de tratar de questões próprias ao cotidiano dos locais de trabalho, incluindo previsões sobre temas adicionais. Houve aqui ganhos diretos, mas também a negociação de sacrifícios, o que sugere cautela na avaliação do impacto da negociação coletiva no período. Um acordo na indústria de maquinário agrícola em Goiás, por exemplo, abriu a possibilidade de que a fábrica passasse a operar, em caráter excepcional, com turnos de 12 horas, medida que beneficia a empresa e coloca em risco a saúde dos trabalhadores, submetidos a jornadas mais longas. Esse expediente é justificado pela existência de um plano de contingência, de modo que “em caso de contaminação, é determinada a quarentena e o isolamento por 15 dias não só da pessoa que apresentou o sintoma, mas também das demais pessoas que tiveram contato com o doente, mesmo que assintomáticas”, permitindo que “os trabalhadores e os turnos não afetados pelo afastamento do ‘grupo de risco’ ou pela quarentena/isolamento em função da contaminação pela COVID-19 possam assumir as atividades da equipe que foi afastada” (Sistema Mediador). Assim, a situação de pandemia foi utilizada para justificar a imposição de uma maior carga de trabalho. Por outro lado, foram introduzidos critérios desenhados para permitir o afastamento temporário dos trabalhadores mais vulneráveis sem que eles sejam demitidos. Parece claro que se trata de uma estratégia defensiva por parte do sindicato, cuja prioridade foi preservar os empregos, mas em situação francamente hostil ao mundo do trabalho, não é indiferente que a representação trabalhista seja capaz de impor condições mínimas nessa área, tratando inclusive de questões que não foram especificadas pela MP 936.
De fato, detalhes sobre a proteção contra a contaminação pelo Sars-Cov-2 no ambiente de trabalho foram tematizados por acordos diversos, inclusive no que diz respeito a características particulares de determinadas categorias e seus locais de trabalho. Foram negociadas, assim, cláusulas que exigem a redução da quantidade de passageiros nos ônibus que transportam os trabalhadores às empresas; a desinfecção do ambiente de trabalho e das máquinas; o cancelamento de treinamentos e viagens; a distribuição de máscaras; a medição da temperatura dos funcionários etc. Um acordo assinado na indústria elétrica em Minas Gerais, nesse sentido, estabeleceu:
A empresa deverá garantir o ambiente produtivo limpo e adequado, além de fornecer: lavatório com água e sabão e toalha; na impossibilidade, álcool gel 70% para higiene das mãos. Durante todo o estado de Calamidade Pública decorrente do Coronavírus (COVID-19), a empresa adotará medidas de higienização dos locais de trabalho, áreas comuns, bancadas de trabalho, dentre outras.
(Sistema Mediador).
Destaca-se, ainda, a exigência de condições especiais para os trabalhadores enquadrados nos chamados “grupos de risco”, questão abordada por diferentes acordos. Um sindicato do setor de calçados da Bahia, por exemplo, negociou a seguinte cláusula:
Todos os empregados da EMPRESA que se encontram inseridos de grupo de risco de contaminação pelo COVID-19, também terão sua jornada de trabalho reduzida, na forma estabelecida neste pacto. Todavia, considerando a necessidade de contingenciamento dos riscos de contaminação enaltecidos pela Organização Mundial da Saúde, tais empregados, durante o período de vigência deste acordo coletivo, permanecerão em casa, recebendo da EMPRESA a remuneração a que fariam jus pelas horas de trabalho objeto do presente ajuste. (Sistema Mediador).
Um exemplo adicional vem de um sindicato no setor da confecção, indústria conhecida pela prevalência do trabalho feminino: o acordo em questão estabeleceu que “as empregadas grávidas são consideradas como grupo de risco para a COVID-19 e será resguardado o direito de executar as atividades em domicílio quando possível o home office, aplicando a suspensão do contrato nos demais casos” (Sistema Mediador). Presentes em diferentes setores, portanto, os sindicatos aproveitaram a negociação coletiva motivada pela MP 936, que a princípio deveria tratar de temas como a redução da jornada e a suspensão dos contratos, para incluir cláusulas que dizem respeito ao cotidiano trabalhista de categorias específicas. Convém destacar, todavia, que os acordos resultam de processos de negociação atravessados por interesses conflitantes. Prejudicados por uma crise econômica generalizada, os trabalhadores têm sido pressionados a fazer concessões para preservar seus empregos; situação precária que dificulta, inclusive, a viabilidade prática das medidas sanitárias individuais e coletivas necessárias à redução dos riscos em tempos de pandemia. Diante da gravidade da ameaça representada pelo novo coronavírus, nesse sentido, um protocolo que garanta uma efetiva proteção no local de trabalho é impossível em grande parte das atividades e, mesmo nos casos em que são definidas medidas estritas, não há garantias de que elas serão cumpridas na prática. Ainda assim, é relevante que a representação sindical estabelecida apareça como um anteparo à imposição unilateral das políticas corporativas em resposta à COVID-19. Em contato direto com o cotidiano do trabalho de diferentes categorias, os sindicatos viram na negociação coletiva motivada pela MP 936 uma oportunidade para influenciar as políticas corporativas para além da simples preservação do emprego e da renda, buscando discutir o trabalho em sentido ampliado. Particularmente, é notável que os sindicatos tenham disputado as medidas sanitárias que afetam a organização da produção, campo em que o capital tende a afirmar sua autoridade de forma despótica.
Os sindicatos negociaram também ganhos remuneratórios complementares ao que foi estabelecido pela Medida Provisória. Muitos acordos nessa linha definiram cláusulas que garantem um piso salarial mínimo. Um acordo de farmacêuticos no Ceará, por exemplo, estabeleceu que “o empregador deverá efetuar o pagamento de ajuda compensatória mensal no valor correspondente à diferença entre o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda pago pelo Governo Federal e o piso salarial da categoria vigente, que é de R$4.014,21” (Sistema Mediador). De forma similar, acordo assinado por um sindicato de trabalhadores em condomínios residenciais e comerciais no Distrito Federal definiu que, na situação de suspensão do contrato, “caso o empregado venha a receber, efetivamente, [...] menos do que 75% da sua remuneração original, [o empregador] pagará a diferença” (Sistema Mediador). Um acordo coletivo com uma empresa de componentes automotivos em Pernambuco, por sua vez, prevê um “percentual líquido mantido” para diferentes faixas salariais submetidas à redução da jornada (100% para os salários até R$1.500, 95% para os até R$2.090, e assim por diante, até o mínimo de 80% para os salários acima de R$10.450), o que altera o cálculo em benefício dos trabalhadores.
Essa prática foi adotada por diferentes sindicatos, que introduziram nos acordos a previsão de uma ajuda compensatória “adicional” ou “complementar”. Em alguns casos, a remuneração líquida foi integralmente preservada, o que significa que, para além de possíveis perdas previdenciárias (3), as empresas aderiram ao programa sem que isso significasse uma perda imediata na remuneração mensal dos trabalhadores cobertos pela cláusula. Também neste ponto, é possível encontrar exigências que dizem respeito a categorias específicas. Um caso típico é o de trabalhadores do comércio, cujo salário é complementado por comissões por vendas, valor excluído da recomposição salarial prevista pela MP 936. Um acordo coletivo assinado por um sindicato de comerciários, nesse sentido, estabeleceu o seguinte:
Referente aos empregados comissionistas, com o intuito de diminuir as perdas decorrentes da queda nas vendas no período do mês de Maio a Julho de 2020, bem como, garantir um valor mínimo de remuneração, considerar-se-á exclusivamente para fins deste Acordo Coletivo de Trabalho, a remuneração mensal como sendo composta pela média de comissões dos últimos 12 (doze) meses. Neste sentido, os empregados comissionistas receberão ajuda compensatória mensal, visando aproximar o ganho mensal do empregado à totalidade da sua remuneração líquida, sendo que a soma da ajuda compensatória e do benefício emergencial, neste caso, decorrerá em perda máxima de 16% (dezesseis por cento) da remuneração mensal. Mensalmente será demonstrado aos empregados comissionistas o valor das comissões que eles teriam direito caso não houvesse a previsão do pagamento de média das comissões, para que entendam ser mais vantajoso essa forma de pagamento. Referido montante correspondente à média anual das comissões possui a mesma natureza jurídica das comissões, substituindo-as, para todos os efeitos legais, pelo período do mês de maio a julho de 2020. (Sistema Mediador).
Estudo recente do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, que analisou acordos e convenções coletados por meio da imprensa ou diretamente com os sindicatos, confirma as tendências aqui apresentadas (DIEESE, 2020), mas é preciso reconhecer que a possibilidade de obter ganhos concretos por meio da negociação coletiva depende da situação enfrentada por categorias e empresas específicas, isto é, do cálculo de até que ponto a preservação do emprego justifica sacrifícios na remuneração e nas condições de trabalho, o que significa que a margem de manobra pode variar entre grupos distintos, limitando o alcance da análise qualitativa. Quando se considera os setores econômicos em que ocorreu atividade sindical de negociação nos marcos da MP 936, números obtidos por meio do cruzamento de dados extraídos de cada acordo com informações sobre as empresas disponibilizadas pela Receita Federal, a distribuição setorial confirma a expectativa de uma participação importante de categorias tradicionalmente bem organizadas, como os metalúrgicos na indústria automotiva, mas revela também a presença marcante de atividade negocial em setores notoriamente impactados pela crise, como os transportes e os hotéis, bares e restaurantes, além do desinteresse em setores relativamente insulados dos impactos da pandemia, como o agribusiness e a mineração.
A tabela 3 (ao lado), por sua vez, compara em setores selecionados a proporção dos acordos coletivos assinados no âmbito da MP 936 com a distribuição dos acordos no mesmo período (do início de abril ao fim de julho) no ano anterior, o que confirma a hipótese da participação ativa de sindicatos bem estabelecidos e também daqueles nos setores mais impactados, além da compreensível pouca adesão de sindicatos ligados a setores relativamente alheios à crise.
A baixa participação da construção civil, por exemplo, pode ser explicada pelo fato de que nesse setor houve aumento dos empregos formais (ainda que o trabalho informal no setor tenha sido prejudicado), como atesta a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Agência CBIC, 2020). Já no setor do transporte aéreo (na tabela acima, componente dos transportes em geral), diretamente afetado pela crise, os números saltaram de 1 acordo entre abril e julho de 2019 para 18 acordos assinados especificamente para tratar da MP 936 no mesmo período em 2020, o que demonstra a capacidade da representação sindical estabelecida para reagir aos desafios conjunturais que se manifestam em setores específicos.
Quando se trata dessa diversidade setorial, é preciso levar em conta que os acordos coletivos podem ser substituídos por convenções, que cobrem categorias
Tabela 2 - Acordos Coletivos sobre a MP936
Fonte: Elaboração própria, com base nos acordos registrados no Sistema Mediador e nos dados do Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ). Dados de abril a junho.
Tabela 3 – Acordos em 2019 x Acordos da MP 936 (abril-junho)
Fonte: Elaboração própria, com base nos acordos registrados no Sistema Mediador e nos dados do Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ). Dados de abril a junho.
Tabela 4 – Convenções Coletivas sobre a MP 936
Fonte: Elaboração própria, com base nos acordos registrados no Sistema Mediador e nos dados do Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ). Dados de abril a junho.
inteiras em determinada base territorial e não apenas empresas específicas. A prevalência de uma ou outra modalidade de negociação depende de características particulares a cada setor, mas, no período analisado, as convenções também apresentam uma distribuição setorialmente diversificada. O caso da construção civil é novamente interessante para ilustrar a variação setorial da participação sindical na implementação da MP 936. Nas convenções, o setor aparece com maior representatividade do que entre os acordos (9,6%), mas isso decorre, principalmente, do fato de que, nesses casos, a negociação se dá com entidades representativas patronais e, assim, podem cobrir um número maior de categorias de trabalhadores sob um mesmo “guarda-chuva” de negociação coletiva. Uma análise pormenorizada das convenções na construção civil revela que mais da metade dos documentos diz respeito ao setor da construção pesada e de infraestrutura (a análise citada acima, feita pela câmara patronal do setor, sugere duas explicações possíveis: a retração habitual que acompanha o período de chuvas e a redução do investimento público). Dos 6 acordos restantes, 5 dizem respeito a sindicatos que representam também a indústria mobiliária, 4 deles no Rio Grande do Sul. Ao lado do fator propriamente setorial que conformou a atividade de negociação coletiva no período, portanto, atuam também as diferentes tradições sindicais locais, o que reforça a ideia de que a presença dos sindicatos, inclusive no que diz respeito às estratégias e práticas de organização adotadas, pode afetar a implementação desse tipo de programa.
A conclusão, enfim, é que a representação sindical estabelecida foi capaz de reagir à crise não de maneira homogênea e horizontal, mas respeitando as diferenças setoriais e ocupacionais, influenciando diretamente a política de preservação do emprego e da renda durante a pandemia e, além disso, disputou as respostas corporativas à crise em sentido mais geral, exercendo um papel ativo na tentativa de regulação do problema sanitário nos locais de trabalho. Ainda que fragilizados por reformas recentes e diante de um governo abertamente adversário, os sindicatos atuaram como a voz de trabalhadores cujo poder de barganha foi prejudicado pelas circunstâncias econômicas e por um mercado de trabalho em crise em diferentes setores, da indústria aos serviços. Em suma, mesmo em um contexto francamente anti-trabalhista e com fortes pendores individualistas, os sindicatos ainda contam.
Os trabalhadores e o Auxílio Emergencial
Os direitos vinculados ao trabalho formal definido pela CLT constituem apenas uma das dimensões da proteção social no Brasil; historicamente, foram estabelecidos outros sistemas e coberturas, do que são exemplos o Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e as iniciativas vinculadas ao Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). Na última década, o programa Bolsa Família foi uma marca importante no combate à extrema pobreza. Com o advento da pandemia, a criação emergencial de um programa de transferência direta de renda capaz de cobrir os trabalhadores “informais” foi proposta de diferentes formas, refletindo a existência de concepções diversas sobre a proteção social, questão que continuou a permear as polêmicas estabelecidas nessa seara desde então. No fim de março, por exemplo, propôs-se a criação de uma Renda Básica de Cidadania Emergencial, projeto que reconheceu a importância do Bolsa Família, mas argumentou que o programa acolhe apenas os “extremamente vulneráveis”, deixando desprotegidos “outros brasileiros pobres”, além de criticar os baixos valores pagos por esse benefício. A nova renda básica deveria complementar o valor pago aos beneficiários do Bolsa Família e incluir um grupo maior de beneficiados, oferecendo um benefício especial no valor máximo de R$1.500 por família (PL 873). O projeto efetivamente aprovado pelo Congresso Nacional (PL 1066), por sua vez, foi baseado em outra proposta e, em sua versão final, propôs a criação de um “auxílio emergencial” cujo apelido “oficial”, adotado pela própria Câmara dos Deputados, foi “coronavoucher”, nomenclatura que foi utilizada por parte da imprensa e gerou controvérsias (Bolle, 2020).
Como contraponto aos princípios que orientaram o Benefício Emergencial vinculado à CLT, é particularmente relevante a questão do enquadramento dos beneficiários do novo Auxílio Emergencial. O texto sancionado pelo presidente estabeleceu um valor de R$600 que seria pago, por três meses, para o “trabalhador” sem vínculo formal ativo que cumprisse certos critérios de renda e idade, e que fosse enquadrado como microempreendedor individual, contribuinte individual da Previdência Social ou “trabalhador informal, seja empregado, autônomo ou desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente inativo, inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal”. Houve a possibilidade, ainda, de autodeclaração
de renda para aqueles sem registro em programas anteriores. De imediato, o Governo Federal enfrentou muitas dificuldades para operacionalizar os pagamentos, principalmente nos casos de autodeclaração, cuja aprovação dependeu de análise individual. Diante disso, o ministro Paulo Guedes reconheceu que o governo “descobriu” subitamente a existência de 38 milhões de “brasileiros invisíveis”, o que sugere certa surpresa com a situação daqueles que ele descreveu da seguinte maneira: “Cerca de 10 milhões são realmente muito pobres. Já os outros 25 a 30 milhões são empreendedores, trabalhadores por conta própria. É gente que está por aí se virando, ganhando a vida” (Agência Senado, 2020). A distribuição dos auxílios concedidos durante o mês de abril está na Tabela 5.
No que diz respeito aos “trabalhadores informais” não registrados em programas sociais anteriores (os “Outros” da tabela), as definições foram ambíguas e, de fato, muitos outros tiveram seus pedidos rejeitados, questão que levou ao debate sobre a possível ampliação dos beneficiários do auxílio. A Câmara e o Senado alcançaram um rápido consenso e aprovaram, no dia 22 de abril, a ampliação do Auxílio Emergencial, proposta
que se baseou, justamente, no PL 873 anteriormente mencionado (o que se refere à Renda Básica de Cidadania Emergencial), ainda que a versão aprovada tenha sido bastante modificada em relação ao texto original. Nos marcos das questões aqui discutidas, foi notável que a ampliação sugerida pelo Legislativo tenha se orientado pela inclusão de categorias profissionais, um critério alternativo ao da renda. No substitutivo da Câmara dos Deputados ao projeto, por exemplo, aparecem os “os pescadores profissionais e artesanais”; “os trabalhadores das artes e da cultura”; “os catadores e catadoras de materiais recicláveis”; “os taxistas e os mototaxistas”; “os motoristas de aplicativo”; “os caminhoneiros”; “os entregadores de aplicativo”; “os diaristas”; “os seringueiros”; “os garimpeiros”; “os trabalhadores do esporte, entre eles os atletas”; “os barraqueiros de praia, os ambulantes, os feirantes, os camelôs e as baianas do acarajé”; “os garçons”; “as babás”; “os manicures e os pedicures”; entre muitas outras categorias que deveriam passar a receber o auxílio.
A lista cresceu ao longo da tramitação do projeto, à medida que emendas com o objetivo de incluir novas categorias foram apresentadas por deputados de diferentes partidos, o que mobilizou associações e outras organizações da sociedade civil. Durante as primeiras semanas de abril, enquanto os sindicatos defendiam suas prerrogativas no âmbito da MP 936, portanto, os interesses trabalhistas apareceram também no debate sobre o auxílio emergencial para os trabalhadores informais. O texto final aprovado pelo Congresso Nacional, porém, restringiu o número de categorias contempladas. O presidente Jair Bolsonaro, por sua vez, vetou na totalidade esse tipo de enquadramento.
Dois mundos do trabalho?
Quão distantes estão os beneficiários do auxílio emergencial dos trabalhadores formais cobertos pelo benefício emergencial? Partindo da MP 936, aproximadamente 12 milhões receberam o Benefício Emergencial até a primeira semana de julho, segundo estimativa do Ministério da Economia. No total, o Governo Federal prevê conceder o benefício a 24,5 milhões de trabalhadores, o que significaria um gasto total de R$ 51,6 bilhões, a um custo médio de R$ 2.106,12 por emprego (Casalecchi, 2020). Até a primeira semana de junho, 15 bilhões haviam sido efetivamente gastos. Com o Auxílio Emergencial, por sua vez, o governo espera gastar 254 bilhões, dos quais 121 bilhões já foram pagos (dados do Tesouro Transparente, no dia 9 de julho). É particularmente relevante a proporção dos benefícios entre as faixas salariais dos trabalhadores contemplados pela MP 936. A distribuição dos dados parciais da implementação do programa é mostrada na Tabela 6.
O que esses números revelam é que quase 80% dos trabalhadores beneficiados pela MP 936 recebem até 3 salários mínimos, o teto do critério do Auxílio Emergencial, e mais da metade recebe entre 1 e 2 salários mínimos.
Tabela 5 - Enquadramento dos Beneficiários do Auxílio Emergencial
Fonte: Portal da Transparência, dados do mês de abril.
Tabela 6 - Distribuição do Benefício Emergencial
Fonte: Ministério da Economia, dados até 08/06.
No caso do auxílio, o critério é a renda familiar e não a individual, mas parece claro que, pelo simples critério da renda, grande parte dos trabalhadores formais beneficiados pelo Programa Emergencial de Proteção do Emprego e Renda estariam aptos a receber o Auxílio Emergencial oferecido aos “informais”. O trabalho bem remunerado é exceção também no que diz respeito à CLT, isto é, prevalecem neste caso, assim como no mercado de trabalho em geral, os baixos salários, a precariedade e a insegurança em relação ao emprego (os “terceirizados”, afinal, são trabalhadores formais), ainda que mitigados pelas proteções - na forma de balizas normativas - que resistiram às reformas recentes. No atual cenário de crise econômica, ademais, em que as demissões avançam, trabalhadores formais podem rapidamente transitar à informalidade. O que está em jogo, portanto, não são dois públicos radicalmente distintos (os pobres ou vulneráveis aos quais se destina “assistência” ou “auxílio” e os trabalhadores assalariados que têm direito a um “benefício”).
Nesse sentido, foi noticiado recentemente, sobre os planos do Governo Federal, que “o diagnóstico da equipe econômica é que hoje os dois mundos da assistência social e CLT não se conversam”. Para tratar dessa questão, o ministro da Economia, Paulo Guedes, pretende criar uma carteira de trabalho “verde e amarela” com o objetivo de “simplificar a contratação”. A ideia é que o trabalhador ofereça sua força de trabalho a diferentes contratantes, registrando na carteira “a quantidade de horas que faz para cada empregador com a referência do salário mínimo”. De acordo com a notícia, Guedes pretende com isso estabelecer “uma ‘ponte’ de transição entre a assistência social do governo e os contratos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Uma espécie de ‘rampa’ para o trabalhador informal subir e entrar no mercado formal de trabalho” (Fernandes, 2020). Nas atuais circunstâncias, é mais provável que a rampa se transforme em um escorregador que despeje no novo enquadramento os trabalhadores expulsos da proteção vinculada à CLT, dando ares de formalidade à experiência de insegurança e precariedade que se costuma associar ao trabalho informal. Sinal disso é o relato de que o governo, que deverá submeter em breve o projeto ao Congresso, pretende autorizar que as empresas admitam até 50% dos trabalhadores empregados por meio de contratos de
trabalho “por hora” (Temóteo, 2020). Lidaríamos, na prática, com uma radical flexibilização do contrato salarial, o que reduziria ainda mais o escopo da regulação pública do trabalho no Brasil, tendência marcante das contrarreformas trabalhistas introduzidas nos últimos anos (Krein, 2018).
O Governo Federal não foi a única força política atenta à “descoberta dos invisíveis”, questão que tem sensibilizado líderes por todo o espectro ideológico. A disputa pela herança política do Auxílio Emergencial, que beneficiou diretamente milhões de brasileiros, tem se estendido aos debates sobre a criação de um novo programa permanente. Quem serão e em quais termos serão definidos seus sujeitos e beneficiários? Há aqui um enorme público à disposição de ambições políticas diversas, cujos representantes buscaram imprimir diferentes concepções sobre a assistência ou proteção social, tratando alternativamente dos “pobres”, dos “vulneráveis”, dos “trabalhadores” (divididos em categorias profissionais ou não), ou simplesmente dos “microempreendedores”, o que denota já, nessa plasticidade de denominações, as diversas vertentes em jogo nesse enorme rearranjo do mundo do trabalho na contemporaneidade, que deve ser entendido em termos ampliados.
Conclusão: romper as cordas?
A despeito das diferentes perspectivas em disputa, é relevante que, diante do bloqueio político à aprovação de uma renda mínima mais ambiciosa, os defensores da ampliação do Auxílio Emergencial tenham escolhido propor um enquadramento orientado por categorias definidas, majoritariamente, em termos profissionais (podemos acrescentar aos exemplos mencionados anteriormente os “vendedores de marketing multinível e os vendedores porta a porta”, “os produtores em regime de economia solidária”, “os barbeiros” etc.). Na prática, era previsível que esse critério seria bloqueado pelo Poder Executivo, mas o fato de que os legisladores viram na inclusão de categorias como essas uma maneira de pressionar politicamente o Presidente da República indica a relação possível entre a mobilização de demandas específicas (ou mesmo “corporativas”) vinculadas ao mundo do trabalho e a ampliação da proteção social como um todo, movimentos que, se comportam tensões e ritmos distintos, podem se alimentar mutuamente. Para colocar de outro modo, diante da
frieza dos números e das impossibilidades técnicas apresentadas pelos críticos da ampliação do Auxílio Emergencial (como a falta de recursos e as dificuldades para identificar com precisão os integrantes individuais dessas categorias, por exemplo), os legisladores buscaram na experiência concreta do trabalho no país uma forma de qualificar a abstração geral dos “pobres” e, assim, evocaram identidades e demandas propriamente trabalhistas no jogo político, tentando direcionar ao presidente, que acabaria por vetar pessoalmente esses dispositivos, a insatisfação popular com os limites da proteção oferecida pelo Estado. Dessa maneira, o trabalho, inclusive em sua dimensão profissional, é ainda elemento importante da experiência popular no Brasil; seja ele “formal” ou “informal”, o trabalho pode ser politicamente mobilizado e, assim, se tornar um componente relevante das disputas pela conformação da proteção social.
Isso sugere que há nesse jogo um lugar para os sindicatos que, como a atividade negocial em meio à pandemia demonstrou, têm operado na linha de frente do cotidiano do trabalho de um conjunto relevante e diversificado de trabalhadores. No que diz respeito à representação dos interesses trabalhistas, os sindicatos são ainda a forma típica de organização, adotada com maior ou menor eficiência e entusiasmo por diferentes grupos profissionais. Os sindicatos não estão apenas nas fábricas, mas também em setores usualmente considerados “precários” ou caracterizados por novas formas de organização. Por outro lado, é preciso reconhecer que a legislação restritiva há muito estabelecida no Brasil exerceu uma pressão constante no sentido da fragmentação, segmentação e exclusão de grupos de trabalhadores do acesso à representação sindical (e à proteção social correspondente). Os sindicatos brasileiros nem sempre aceitaram de forma passiva as determinações da regulação estatal. Sindicalistas foram aliados e protagonistas de amplos movimentos populares em diferentes momentos da história brasileira e, além disso, houve tentativas diversas de desafiar a estrutura oficial, inclusive no que diz respeito à ampliação das bases de representação. No todo, porém, parece claro que o sistema corporativo impôs constrangimentos significativos ao livre exercício da representação sindical, o que marcou a constituição dos sindicatos no país e limitou sua influência, questão particularmente relevante em um contexto de redução do escopo da proteção social consagrada pela CLT.
Esse alcance limitado, todavia, não significa que a proteção social ao trabalho organizado deixe de ser um horizonte atrativo para os trabalhadores excluídos, seja porque jamais foram incluídos nesse arranjo ou porque dele foram expulsos por reconfigurações recentes. Como argumentou Adalberto Cardoso (2019: 185) sobre a experiência do trabalho no país, “o Estado capitalista brasileiro construiu uma utopia irresistível num ambiente de grande vulnerabilidade socioeconômica das massas: a utopia da proteção estatal representada pela legislação social e trabalhista”. Diante disso, é relevante que o desmonte das proteções trabalhistas brasileiras nos últimos anos tenha sido acompanhado por ataques às estruturas de representação sindical tradicionalmente estabelecidas que, a despeito de suas limitações, constituem ainda uma barreira a essas transformações regressivas. Ao mesmo tempo, se é verdade que o esgarçamento do sistema corporativo fragilizou os sindicatos e os colocou na defensiva nos últimos anos, esse processo deixa em aberto também a possibilidade de facilitar uma reorganização das bases sindicais. O pacto varguista - que nunca foi plenamente aceito pelas classes dominantes, nem por uma parte importante do movimento operário combativo - foi definitivamente quebrado e não há, hoje, qualquer justificativa plausível para a supressão da liberdade sindical.
Em suma, os sindicatos são, para o bem ou para o mal, os representantes históricos do trabalho socialmente protegido no Brasil e, assim, podem ser um componente importante da organização “desde baixo” das demandas por trás do conflito social que os poderes constituídos intuem que devem remediar “a partir de cima”. Ainda que seja cedo para sugerir conclusões definitivas, há indícios de que isso pode estar acontecendo. Os sindicatos, por exemplo, são interlocutores importantes de movimentos como a União Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Camelôs, Feirantes e Ambulantes do Brasil (UNICAB) que, em 2019, referiu-se ao seu integrante típico nos seguintes termos: o “trabalhador precarizado, sem direitos trabalhistas e sem reconhecimento da contribuição que faz para a economia das cidades”, e com relação ao qual “no momento em que se vê como pequeno negociante e não como classe trabalhadora, está minada qualquer possibilidade de que alcancemos políticas que garantem a concessão da terra urbana para que se possa trabalhar com dignidade” (UNICAB, 2019). Os sindicatos tradicionais foram também apoiadores, ainda que não protagonistas, da mobilização trabalhista de maior visibilidade durante os primeiros meses da pandemia – a organização dos entregadores empregados por aplicativos de celular, que realizaram uma greve nacional no 1º de julho batizada de #BrequeDosApps. Entre as bandeiras do movimento, figurou o lema “Entregador não é empreendedor. Entregador é trabalhador e merece direito!”. Destaca-se, nesse sentido, que a pandemia tenha motivado alianças entre diferentes centrais sindicais, mas também plataformas conjuntas entre os sindicatos e movimentos ambientais e por moradia, iniciativas que, segundo a Central Única dos Trabalhadores (CUT), “apresentam uma gama de propostas fundamentais para proteger a população brasileira, as populações periféricas, os segmentos mais vulneráveis na sociedade e os trabalhadores e trabalhadoras” (CUT, 2020). Caso essa abertura se afirme na prática, o sindicalismo brasileiro pode recuperar o espírito de um “sindicalismo de movimento social” há muito sugerido, estratégia por meio da qual os sindicatos de categorias “tradicionais” mobilizam seus recursos na organização de novos grupos e, nesse processo, revitalizam suas próprias forças (Moody, 1997; Seidman, 2011).
Não se deve, é claro, levar longe demais as conclusões inspiradas pelos exemplos mencionados que, apesar de relevantes, são pontuais. O sistema corporativo perdeu alguns de seus pilares, mas continua de pé. Ainda mais importante é que as proteções oferecidas pela CLT, a despeito do desmonte recente, continuam a garantir direitos consideravelmente melhores do que o “auxílio” atualmente oferecido pela assistência social, o que significa que a oposição à desregulamentação do trabalho formal continuará a demandar atenção considerável dos sindicatos pelo futuro previsível. Em suma, os sindicatos não podem simplesmente abandonar seu campo de jogo habitual, ainda que esse espaço tenha sido reduzido. Mais do que de declarações públicas e alianças formais, assim, a relevância dos sindicatos tradicionalmente estabelecidos no Brasil dependerá nos próximos anos de um equilíbrio difícil entre a defesa de seu papel de representantes da “utopia” histórica do trabalho protegido no país e a permeabilidade a novos sujeitos e formas de organização.