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Artigo

26 de junho de 2020

REFLEXÕES NA PANDEMIA

‘A TRABALHADORA DOMÉSTICA TAMBÉM É UM SER HUMANO’: O direito a quarentena remunerada como novo privilégio social?

Louisa Acciari

pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Sociologia
Integrante do Núcleo de Estudos em Sexualidade e Gênero (Neseg)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil)

  “Cleonice Gonçalves, presente!” virou o novo grito de luta nos grupos de WhatsApp de trabalhadoras domésticas. Não por acaso, uma das primeiras mortes confirmadas por Covid-19 no Brasil foi de uma trabalhadora doméstica: Cleonice Gonçalves, 63 anos, diabética, moradora da cidade de Miguel Pereira, no interior do estado do Rio de Janeiro. Sua empregadora, residente do Leblon, tinha voltado contaminada de uma viagem à Itália e não avisou a trabalhadora. Uma sobreviveu; a outra, não (SLATTERY e GAIER, 24/03/2020).

  O novo coronavírus foi inicialmente visto como uma doença afetando mais as classes média e alta, cosmopolitas, com condição financeira de viajar e circular pelo mundo. Porém, o vírus logo começou a atingir as classes populares, tendo nelas um efeito mais crítico. O contato íntimo entre empregadoras da classe média e trabalhadoras domésticas remuneradas pode ser considerado um fator risco de transmissão desse novo vírus. Há um risco de transmissão “de cima para baixo”, como no caso de Cleonice; pois, se alguém na família do empregador estiver doente, o tipo de tarefa efetuada pela trabalhadora doméstica pode expô-la ao contágio, seja por limpar a casa seja por cuidar dos membros dessa família. Mas há também um risco de transmissão “de baixo para cima”, pelo fato de o trabalho expor a trabalhadora a longos trajetos em transportes superlotados e sem proteção adequada, o que poderia levar, in fine, a contaminar a trabalhadora doméstica e seus empregadores.

  Enquanto as classes média e alta conseguem com certa facilidade se isolar em casas bem cuidadas e espaçosas, com opção de home office, o isolamento social é muito mais complexo para as classes populares. Nestas, a maioria vive com vários membros da família na mesma casa, às vezes em condições muito precárias, com saneamento ausente ou inadequado ou, como foi relatado em alguns bairros do Rio de Janeiro, sem água corrente (MIRANDA, 23/03/2020). Os mais pobres são obrigados a continuar trabalhando, usando o transporte público, onde é impossível evitar o contato com outras pessoas, e sem os recursos financeiros para comprar os itens de proteção recomendados: luvas, máscaras e álcool em gel. Dependem do sistema público de saúde, que prevê em breve um “colapso” e avisou não dispor de testes ou leitos suficientes para atender a todos os pacientes.

A casa grande e a senzala em tempos de Covid-19

  As trabalhadoras domésticas são o exemplo típico dessa classe trabalhadora precarizada, exposta a altos riscos e sem amparo social: mulheres negras, pobres, com uma renda média abaixo do salário mínimo, chefes de família e trabalhando na informalidade. Das cerca de 6,3 milhões de trabalhadoras domésticas no Brasil, apenas 41% contribui para a previdência social, 70% não tem carteira assinada e 47% são diaristas (GUEDES e MONÇORES, 2019). Do contingente de diaristas, 145.487 estão cadastradas como microempreendedor individual (MEI).1 Isso significa que, apesar de existir uma lei garantindo direitos trabalhistas à categoria (lei complementar no 150/2015, que regulamenta a PEC no 72/2013), a maioria das trabalhadoras domésticas se encontra fora de seu âmbito. Se o mercado de trabalho doméstico já é historicamente pouco formalizado, essa precariedade se faz sentir de maneira mais violenta em momento de crise pandêmica. 

  Pesquiso e trabalho com os sindicatos de trabalhadoras domésticas afiliados à Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) desde 2014. Ao longo dos anos, entrevistei mais de 80 trabalhadoras, sindicalistas e não sindicalizadas, acompanhei o cotidiano das diretoras da Fenatrad e tive a possibilidade de visitar os sindicatos dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Paraíba e Sergipe. No presente momento, o sentimento das dirigentes é unânime: estão “apavoradas”.

  Primeiramente, porque a grande maioria das trabalhadoras domésticas têm uma saúde frágil. Não tenho dados estatísticos sobre esse aspecto, mas quase todas as que conheci ou entrevistei sofrem das mesmas doenças: diabetes, hipertensão, hérnia, problemas de coluna e pedras na vesícula. Muitas fizeram cirurgias complexas ou tratamento de câncer, várias sofrem de asma ou alergias, apesar de terem passado a vida limpando as casas dos outros. O fato de quase todas terem diabetes ou hipertensão preocupa, pois essas duas condições são um fator de risco maior frente à Covid-19. Em Segundo lugar, porque suas condições precárias de trabalho as tornam mais vulneráveis neste momento de crise. Um levantamento parcial efetuado pelos sindicatos da categoria por telefone nas últimas semanas de março de 2020, e que me foi comunicado pelas diretoras da Fenatrad, destaca três tipos de caso: as diaristas, as trabalhadoras domésticas com carteira assinada e as cuidadoras.

As diaristas

  Segundo as dirigentes sindicalistas, 90% a 95% das diaristas com quem elas conseguiram

entrar em contato estão sendo demitidas e sem receber salário. Essa demissão em massa não é ilegal; pela lei, as diaristas são “autônomas” e não têm vínculo empregatício. Isso significa que elas não têm acesso a seguro desemprego ou FGTS e que o empregador não lhes deve aviso prévio ou compensação rescisória. Estão totalmente desemparadas. Há cerca de 2,5 milhões de diaristas no Brasil. Se todas forem demitidas, serão milhões de famílias sem renda ou com queda significativa na renda durante a crise pandêmica. Como afirmado por Valdelice de Jesus Almeida, presidenta do sindicato da categoria no estado do Maranhão e diretora da Fenatrad:

– A minha maior preocupação é com as diaristas, como eu, que estão em casa sem trabalhar e, portanto, sem receber. Nós já tínhamos aquelas despesas que a gente custeia. Eu, por exemplo, sou um complemento da renda da minha família, tem umas coisas que o pagamento é comigo. Como é que vai ficar agora? Esta é minha maior preocupação: como é que eu que estou sem renda vou poder estar honrando esse compromisso? E a maioria das diaristas vai estar passando por essa situação. (Entrevista realizada pela autora em 31/03/2020)

  A condição das diaristas vem sendo questionado pelos sindicatos da categoria desde a aprovação da lei complementar no 150/2015 (ACCIARI, 2016, 2018). Apesar de já existirem diaristas antes da lei, foi essa legislação que formalizou a distinção entre mensalistas e diaristas em termos de direitos. Essa diferença contradiz a Convenção no 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre trabalho decente para as trabalhadoras domésticas, ratificada pelo Brasil em 2018, que não reconhece nenhum critério de dias trabalhados para a aplicação dos direitos (NICOLI e VIEIRA, 2020). Ademais, os sindicatos disputam a classificação de “autônoma”, argumentado que, na verdade, as diaristas têm seus horários, tarefas e salários controlados por um empregador. Em 2015, já alertavam que essa modalidade permitiria contornar os encargos trabalhistas, evitando a criação de vínculo empregatício, embora este exista na prática.

 

As trabalhadoras domésticas com carteira assinada 

 

  Além das diaristas, há uma minoria de trabalhadoras domésticas com carteira assinada. Algumas estão conseguindo negociar uma quarentena remunerada, com antecipação de férias e 13º salário, com a manutenção da devida remuneração. O sindicato do município de São Paulo, onde há acordos coletivos com os empregadores desde 2017, estima que cerca de 70% das trabalhadoras domésticas com carteira assinada estão em quarentena com remuneração. Mas isso leva em conta somente as trabalhadoras e patroas com quem o sindicato conseguiu falar nas últimas semanas, e provavelmente não reflete a realidade do restante do país, onde tais acordos não existem.

  O relato de muitas trabalhadoras mostra, muito diferentemente, que as domésticas estão sendo obrigadas a trabalhar, pressionadas pelas necessidades da sobrevivência. Tanto que a Fenatrad lançou uma campanha, “Cuida de quem te cuida”, exigindo quarentena remunerada para a categoria (FENATRAD, 18/03/2020). Diferentemente de outros setores, as relações de trabalho ainda são pouco regulamentadas e fiscalizadas no setor doméstico, tornando a trabalhadora extremamente dependente de uma relação pessoal com seu empregador. Na ausência de regras formalizadas, as trabalhadoras não têm a opção de ficar em casa. Em compensação, quando ela conta com carteira assinada, os casos de abuso ou demissão em meio à crise pandêmica têm chances de serem levados à Justiça Trabalhista por seus sindicatos.

As cuidadoras

  O terceiro caso, talvez mais complexo, é o das cuidadoras de idosos, que foram declaradas como setor “essencial” pelo governo. Segundo os sindicatos, a maioria absoluta das cuidadoras está de fato trabalhando. Em muitos casos, os pacientes não poderiam ficar sem esse atendimento e suas próprias famílias nem sempre teriam as condições de substituir o trabalho da cuidadora. Porém, houve muitos relatos de abuso, mostrando que os direitos dessa categoria são pouco respeitados. Muitas cuidadoras continuam usando os transportes públicos cotidianamente, nem sempre o empregador fornece os devidos equipamentos de proteção individual (EPIs) e os sindicatos têm exposto várias ocorrências de quarentena forçada na casa desse empregador. Em alguns casos, os sindicatos falaram até em “cárcere privado”. Certas famílias empregadoras obrigaram as cuidadoras a permanecerem confinadas com elas até o fim da quarentena, sob ameaça de serem demitidas, enquanto outras exigiram turnos duplos ou triplos, sem oferecer às trabalhadoras nenhuma compensação financeira, nem tempo suficiente de descanso.

Se, por um lado, podemos compreender o dilema das famílias empregadoras que querem evitar o risco de contágio e manter os necessários serviços da cuidadora; por outro, não há nenhum outro setor que obrigue seus funcionários a dormir e ficar de quarentena no local de trabalho. Essa situação alerta de maneira mais ampla para os problemas relacionados à circulação dos trabalhadores considerados essenciais durante a crise de Covid-19: suas condições de transporte, de trabalho e de segurança.

Trabalho precário, pandemia e crise da reprodução social

  Várias autoras feministas discutiram as condições de precariedade das trabalhadoras domésticas e das cuidadoras, revelando a tensão entre a necessidade das tarefas de reprodução social e a desvalorização das mulheres que as efetuam (BRITES e PICANÇO, 2014; GUIMARÃES, 2016; HIRATA e GUIMARÃES, 2012; HIRATA e LOMBARDI, 2016; SORJ, 2014). No contexto da crise atual, essa tensão se torna particularmente visível, e até chocante. Os casos de abusos relatados pelos sindicatos de trabalhadoras domésticas impressionam: famílias cientes de ter uma pessoa contaminada e não informam a trabalhadora, que a ameaçam de demissão, ameaçam os próprios sindicatos e os culpam de criar desemprego; patrões que vão até buscar as trabalhadoras de carro em seu domicílio ou as chantageiam com aumento de salário para ter quem mantenha suas casas limpas.

  Como analisado em outros estudos, o trabalho doméstico está enraizado nas estruturas coloniais da sociedade brasileira (BERNARDINO-COSTA, 2015; GONZALEZ, 1984). A crise de Covid-19 mostra apenas uma nova expressão dessas desigualdades sociais. No imaginário coletivo, certas tarefas não poderiam ser efetuadas pela classe média “qualificada”, mesmo em situação de pandemia. Enquanto a elite e parte da classe média têm direito a uma quarentena remunerada, optam por demitir as trabalhadoras domésticas ou por obrigá-las a se manter no emprego, negando-lhes o direito à saúde e até à vida. Creuza Maria de Oliveira, secretária geral da Fenatrad, afirma: “A trabalhadora doméstica também é um ser humano, tem família e precisa preservar a sua saúde” (FENATRAD, 25/03/2020), enquanto Luiza Batista, presidenta da mesma entidade, enfatiza: “Temos que acabar com essa história de que a quarentena no Brasil virou privilégio de classe” (NUNES, 29/03/2020).

 Essa situação me lembrou a imagem do casal branco em Copacabana manifestando-se a favor do impeachment de Dilma Rousseff em março de 2016, seguido por sua babá negra, que vestia uniforme e levava o carrinho de bebê (BRASIL 247, 14/03/2016). E me remeteu também às declarações recentes do ministro da Economia, Paulo Guedes, lamentando que “até as domésticas” estavam indo para a Disney com o dólar baixo (VENTURA, 12/02/2020). Seja qual for a situação, as trabalhadoras domésticas nunca estão consideradas em nível de igualdade com seus empregadores. É uma categoria constantemente mobilizada para reproduzir as hierarquias sociais de gênero, raça e classe. Em tempos de crise sanitária, isso adota um triste aspecto de necropolítica.

  Conceito desenvolvido pelo historiador camaronense Achille Mbembe (2003), a necropolítica se refere à política da morte organizada pelo Estado. Segundo o autor, em situações de exceção, o Estado teria recurso ilegítimo à força para determinar quem deve viver e quem deve morrer. Sem entrar de maneira aprofundada em uma discussão sobre esse conceito, podemos notar com preocupação o abandono das camadas mais vulneráveis da população frente ao novo coronavírus. A escolha de quem pode se beneficiar da quarentena remunerada e quem deve se expor aos riscos da doença, em um contexto em que não haverá recursos para tratar todos os infectados, pode ser entendida como uma forma de organizar a morte dos mais pobres. Cleide Pinto, presidenta do sindicato de trabalhadoras domésticas de Nova Iguaçu, afirma com angústia: “Já falaram que não vai ter leitos nem máquinas respiratórias para todo mundo, se tiverem que escolher quem salvar, não vão escolher a gente” (Entrevista realizada pela autora em 31/03/2020).2 

  Este levantamento parcial sobre a sociologia da crise de Covid-19 nos convida a repensar as estruturas coloniais, as desigualdades sociais e as relações de trabalho no Brasil contemporâneo. A flexibilização dos direitos trabalhistas desde 2017, o desmonte dos direitos sociais, assim como a dita tendência da “uberização”, fenômenos amplamente discutidos por sindicatos e acadêmicos (ANTUNES, 2018; ASSUNÇÃO, 2013; KREIN, 2018; SABINO e ABÍLIO, 2019), tornam-se ainda mais dramáticos no momento presente. Se o trabalho informal já era uma realidade estrutural no Brasil há décadas, com mais de 40% da mão de obra trabalhando sem carteira assinada — proporção ainda mais elevada no emprego doméstico remunerado —, as políticas atuais de precarização vêm agravar esse quadro. Uma fratura social está se estabelecendo entre aqueles com direito à quarentena remunerada e os que devem escolher entre a fome ou a doença. Mais do que isso, essa discussão interpela o fato de que entre as profissões declaradas essenciais durante a crise (saúde, alimentação e logística) estejam justamente as mais precárias e mais desvalorizadas socialmente, com muitas atividades tipicamente “femininas”: as cuidadoras, o setor da limpeza, as enfermeiras, as caixas de supermercado, os transportadores de alimentos, os motoristas de Uber e os que entregam compras em domicílio. A questão do cuidado ganhou também uma nova dimensão. Com as escolas fechadas e a possibilidade (obrigação?) para muitos de trabalhar remotamente, apareceram as dificuldades de combinar trabalho produtivo e reprodutivo. Quantos são os relatos de mães sobrecarregadas tentando conciliar o home office com o cuidado dos seus filhos e as tarefas de casa? As que podem contratam babás, e voltamos então ao problema inicial dos riscos sofridos pelas trabalhadoras domésticas em meio à pandemia... Quem cuida de quem, e a que custo? Estamos deixando as tarefas mais essenciais à reprodução da vida humana em condições de extrema precariedade, de exposição à doença e, em certos casos, até à morte. Talvez esta pandemia seja uma oportunidade única de repensar o valor e a socialização do trabalho reprodutivo.

NOTAS E REFERÊNCIAS

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