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Artigo

25 de agosto de 2021

Redes e encruzilhadas

POLÍTICAS DE PRECARIZAÇÃO DA CONDIÇÃO MIGRANTE E LUTAS SOCIAIS PARA ALÉM DOS DADOS

Karina Quintanilha

*Advogada e mestre em ciências sociais, doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp, e vinculada ao Grupo de Pesquisa Metamorfoses do Mundo do Trabalho (CNPq).

Em memória do músico cubano Dugendris Palacios, migrante em SP

Com governos alinhados à extrema direita, Estados Unidos e Brasil se tornaram epicentros mundiais das mortes e contaminação pelo coronavírus. Informações divulgadas na mídia contendo relatórios produzidos por órgãos de segurança nacional indicam que tanto o governo americano como o brasileiro estavam informados, ao menos desde março, sobre os previsíveis impactos da COVID-19 entre a população de seus países. Sabendo do potencial mortífero, similar à perda de vidas nas guerras como decorrência da indústria armamentista, foram negligentes sobre as políticas de prevenção e de saúde emergenciais que deveriam ter sido tomadas desde o primeiro momento (a exemplo de campanhas públicas pelo distanciamento social; distribuição de equipamentos de proteção; aplicação massiva de testes; paralisação de atividades econômicas não-essenciais).

 

A ideia de que tratava-se apenas de uma "gripezinha" foi proferida em repetidos discursos de Trump e Bolsonaro, ocultando o aspecto ideológico e necropolítico por trás da produção da asfixia social durante a pandemia. A COVID-19 mata mais negros do que brancos, mata mais pobres do que ricos, mata mais indígenas do que brancos, mata mais os "invisíveis globais" e aqueles que não tem CPF, dentre eles as trabalhadoras e os trabalhadores migrantes internacionais. Mata mais quem é obrigado a sair pra trabalhar pra comer e quem não tem um respirador reservado nas UTIs dos hospitais privados.

 

Os dados sobre o impacto do coronavírus nas populações social e economicamente precarizadas, apesar da subnotificação, são a maior evidência da miséria de uma sociedade na qual o desenvolvimento desigual, o racismo, a xenofobia, a divisão de classe e gênero são a base que mantém a lógica do lucro acima da vida e que impedem enxergar formas de organização social para além da exploração capitalista.

 

É a lógica de uma sociedade que não acertou contas com a dívida histórica pelas diásporas africanas[1], pelo genocídio indígena, e cujos interesses são pautados por uma violenta política neoliberal que remodela a relação entre Estado e mercado mundial financeirizado em torno da legitimação de guerras e de golpes de Estado; da destruição do meio ambiente (sobretudo agronegócio e minérios); de novas formas de exploração do trabalho como a escravidão digital; do encarceramento em massa e trabalho forçado, incluindo a multiplicação dos centros de detenção de imigrantes[2]; da produção exponencial a cada ano de milhões de pessoas em situação de deslocamento forçado, expulsas de suas terras, refugiadas, e sujeitas às condições precarizantes de vida e trabalho. São as encruzilhadas das fronteiras porosas, uma tese discutida pelo sociólogo Pietro Basso, pois a livre circulação é restrita ao capital e a quem detém capital.

De forma contraditória, conforme se aprofunda essa crise multidimensional, são produzidos lucros estratosféricos para algumas poucas corporações transnacionais, bancos e elites, que se aproveitam da pandemia para "passar a boiada" nos direitos sociais e trabalhistas.

NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DA ASFIXIA SOCIAL NA PANDEMIA:
A EXTREMA-DIREITA FALA A MESMA LÍNGUA

Um acontecimento histórico nos Estados Unidos mudou o curso do que parecia ser a naturalização da asfixia social e da necropolítica contemporânea: o registro da imagem em celular do estrangulamento seguido de morte, em plena luz do dia, de George Floyd por um policial branco em Minneapolis.

Representando a maior expressão da necropolítica cotidiana, o assassinato inflamou revoltas antirracistas por todo o mundo: "I can’t breath, I can’t breath" (Eu não posso respirar, eu não posso respirar)[3]. Mobilizações antirracistas e pró-movimentos negros, tomaram as ruas e as redes dos Estados Unidos até a Palestina, e abalaram a aparente soberania de Trump, colocando o projeto de asfixia social em uma encruzilhada diante do direito inviolável e inalienável à vida. Direito esse tão "fora de moda" desde as revoluções burguesas que criaram a ilusão jurídica da democracia que deveria, mas nunca foi, para todos.

Fonte: Reprodução mídias sociais

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A defesa da vida em meio às seguidas crises sociais contemporâneas reatualizam os sentidos das lutas e extrapolam as fronteiras nacionais e identitárias.

No que diz respeito às diferentes formas de se produzir a asfixia social durante uma crise sanitária sem precedentes em nossas gerações, não é exagero afirmar que governos de extrema-direita falem a mesma língua quando se trata de criar uma falsa ideia de "normalidade", como se o vírus fosse desaparecer por um milagre, e insistir que a economia não pode parar: o lucro de corporações acima da vida da maioria.  

 

Também falam a mesma língua quando se trata de criar fakenews anti-ciência, de culpar a China pela crise sanitária de seus próprios países, de defender bloqueios em países economicamente devastados como Cuba e Palestina, de aniquilar direitos sociais e trabalhistas, de investir na militarização em detrimento da vida, de ameaçar instituições como a Suprema Corte, de atacar a mídia e de legitimar abertamente a violação de direitos humanos, a violência policial e o racismo.

Tais medidas, baseadas e justificadas em um pensamento irracional, criam condições propícias para alastrar a contaminação e as mortes entre a população desses países, principalmente entre os grupos sociais que já vinham sendo fortemente atingidos pelo aumento da desigualdade e do desemprego, embora o benefício emergencial parcialmente liberado crie uma oportunidade propagandista desses governos perante a essas populações na pandemia.

IMPACTOS DA "ASFIXIA" NA POPULAÇÃO MIGRANTE NOS EUA E NO BRASIL

No contexto pandêmico, Trump e sua versão tropical no Brasil também se aproximam ideologicamente quando se trata de produzir políticas de asfixia e invisibilização sobre a população migrante de seus países. Não se pretende aqui comparar dados e políticas sobre os impactos da COVID-19 na população migrante em países com realidades migratórias, demográficas, sócio-econômicas e históricas tão distintas, como Estados Unidos e Brasil. Diferentemente dos Estados Unidos, onde a população migrante internacional é estimada em 14% da população nacional (estima-se que 12 milhões de pessoas sejam indocumentados no EUA[4]), dados indicam que a população migrante documentada no Brasil corresponde a apenas cerca de 1%, um baixo percentual até mesmo se comparado a outros países da América Latina, porém não há dados oficiais sobre a população migrante indocumentada.

 

No plano ideológico, porém, interessa refletir, de forma muito breve, a respeito das possíveis conexões sobre os impactos da asfixia social nas populações migrantes nos EUA e no Brasil durante a pandemia. Nos Estados Unidos – sendo um dos países mais ricos e poderosos do mundo, apesar de sua decadência – análises têm mostrado que os grupos sociais mais afetados pela COVID-19 são negros e imigrantes, principalmente latinos, que compõem a base da força de trabalho naquele país mas vivem em moradias precárias e enfrentam mais barreiras sociais e econômicas no acesso à saúde, evidenciando o desastre do sistema privado de saúde nos EUA.

 

Mas não apenas.

 

Na suposta terra da liberdade, a combinação entre política de indocumentação, exploração do trabalho imigrante (a exemplo da falta de segurança a trabalhadores/as no agronegócio e indústria da carne), e política de criminalização da migração são apontados como fatores que agravaram a contaminação e óbitos por COVID-19 nos EUA. Por receio de serem deportados e/ou por falta de acesso a políticas assistenciais do governo, bem como a necessidade de "sair para trabalhar", migrantes indocumentados se viram na linha de frente da pandemia mas sem alternativa para se isolar socialmente e/ou buscar atendimento médico[5].

Durante a pandemia, Trump, cujo curral eleitoral se liga fortemente às políticas anti-imigrantes e racistas, encontrou pretexto quase perfeito – não fosse a explosão do fenômeno "George Floyd" – para aplicar uma política migratória ainda mais draconiana. Apesar de embates na Corte Suprema alegando que algumas das restrições extrapolam o poder Executivo e passam por cima do Congresso Nacional, como foi a derrota de Trump com relação aos Dreamers (filhos/as de migrantes indocumentados), o jornal L.A. Times publicou que as restrições recentes à migração, se mantidas em vigor por um ano, podem afetar mais de 550.000 potenciais trabalhadores migrantes[6].

 

Na contramão de tratados internacionais de direitos humanos, acordos autoritários preveem o retorno das/os migrantes para seus locais de origem ou para um terceiro país, além de criar novos regulamentos que dificultam a solicitação de refúgio.

 

Na reportagem A Política de Deportação da Administração Trump Está Espalhando o Coronavírus, publicada em 13 de maio de 2020 pela revista New Yorker[7], Kevin Landy, que esteve a cargo dos centros de detenção na era Obama, revelou que quando a pandemia já estalava em Abril mais de 5 mil solicitantes de refúgio continuavam presos sob o ICE (sigla referente à agência federal de Imigração e Alfândega dos EUA) mesmo após o Departamento de Segurança Interna (DHS) dos Estados Unidos reconhecer que essas pessoas tinham provas de perseguição para embasar o pedido de refúgio. A reportagem também denuncia histórias dramáticas de pessoas que estavam agendadas em voos de deportação, principalmente para Guatemala, El Salvador, Honduras e Haiti[8] – e aqui, como não lembrar dos sofrimentos causados pela ocupação da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti – MINUSTAH, a "Missão de Paz" da ONU, liderada pelo Estado brasileiro entre 2004 e 2017. Além das denúncias de estupro de mulheres e crianças haitianas, a própria ONU reconheceu em 2015 que a eclosão de um surto de cólera foi disseminado em decorrência da ocupação militar, causando mais de 30 mil mortes. Uma violência abafada e invisibilizada, como são as mortes nas periferias do mundo durante a pandemia.

 

Em meio a tantos escândalos, ainda tem sido pouco analisada a forma como o governo brasileiro tem se alinhado ao governo norte-americano para facilitar a deportação de brasileiros indocumentados – pessoas invisíveis globais[9] –, inclusive durante a pandemia. No início da crise sanitária global foi reportado que aviões partindo dos EUA trouxeram brasileiros e brasileiras deportados em condições degradantes, sem nenhuma preocupação sobre possível contaminação pela COVID-19 e sobre o destino dessas pessoas[10].

 

Antes mesmo da pandemia, a Associação Brasileira de Antropologia emitiu ofício ao Ministério de Relações Exteriores a partir da denúncia "Governo Bolsonaro facilita a deportação de brasileiros dos EUA", publicada no jornal "O Globo" no dia 29 de julho de 2019[11]. A reportagem mostra uma mudança inédita do Brasil, em que o governo abertamente age contra os interesses e direitos de seus cidadãos no exterior. As alianças políticas com representantes da extrema direita que lideram as políticas anti-democráticas e as políticas anti-imigrantes no mundo – como Donald Trump (EUA) e Viktor Orbán (Hungria) – podem trazer paralelos sobre a forma com que a pandemia tem servido de pretexto para manobras jurídico-políticas autoritárias, em forma de normativas de emergência que ameaçam direitos e garantias constitucionais, sendo a Hungria um exemplo extremo do desastroso autoritarismo neoliberal.

FOTO: Clay Banks

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No Brasil, em se tratando de um país periférico de capitalismo dependente onde a desigualdade alcança um dos maiores índices do mundo – nenhum outro país democrático concentra tanta renda entre o 1% mais rico[12] –, era previsível que a combinação entre o Brasil em crise e a pandemia seria ainda mais fatal que nos Estados Unidos, e abriria portas para o governo intensificar as políticas que violam direitos, sobretudo os cortes nas políticas sociais, além de ataques à educação pública e na legislação trabalhista.

Por Brasil em crise estamos falando de pelo menos 40 milhões de trabalhadores e trabalhadoras no mercado informal, ou seja, sem a proteção da legislação trabalhista, 12 milhões de desempregados e 5 milhões no desamparo sem nenhum recurso para sobreviver caso sejam suspensos os benefícios emergenciais e políticas sociais[13]. Esse quadro já vinha caracterizando o Brasil como um país de expulsão[14], ou seja, temos 3 vezes mais brasileiros buscando melhores condições de vida e trabalho fora do Brasil, do que imigrantes aqui.

 

O caminho sem volta do governo a serviço da extrema direita e do grande capital – num cenário que se alimenta da crise política, econômica e social que já vinha fincando raízes desde 2008, e em especial a partir de 2013, no país –, mostra que é completamente fake a ideia de que a crise pandêmica atinge a todos indistintamente.

 

Dentre os grupos sociais mais afetados e invisibilizados durante a pandemia no Brasil estamos falando dos povos indígenas (ainda mais oprimidas pelo agronegócio e venda de terras para o capital estrangeiro); das populações negras[15] (dados apontam um aumento da violência policial e maior contaminação pela COVID-19 entre pessoas negras); de quilombolas (territórios invadidos, povos despejados e ameaçados); das mulheres (aumento da violência contra as mulheres na pandemia); da população carcerária (Brasil é o terceiro país que mais encarcera no mundo, sendo a esmagadora maioria presa por pequenos tráficos de droga, exposta diretamente ao vírus e às torturas nas prisões superlotadas e que por vezes não tem nem ao menos água[16]), e também estamos falando de trabalhadores e trabalhadoras migrantes e suas famílias, em particular daqueles provenientes de países do Sul global.

 

Apesar de não haver informações precisas sobre o impacto da crise e da pandemia na população migrante no Brasil, existe uma condição extremamente crítica e invisibilizada. No ambiente de trabalho, são inúmeras as denúncias que se multiplicam a cada dia. Reportagem da Folha de São Paulo apurou que migrantes em São Paulo, sobretudo bolivianos e paraguaios, recebem R$0,05 para confeccionar as máscaras anti-Covid[17]. Com as dificuldades burocráticas para acessar o benefício emergencial, sem trabalho e expostos a golpes financeiros, encontram--se sem opção para se prevenir da COVID-19, como denunciado pelo Profissão Repórter sobre a comunidade boliviana em Carapicuíba[18].

 

No agronegócio e nos frigoríferos, setor que mais emprega imigrantes, reportagem da BBC denuncia morte e foco de contaminação de brasileiros e imigrantes, principalmente haitianos e africanos, pela COVID-19[19] na indústria da carne. No trabalho doméstico durante a pandemia, é perturbador o testemunho de uma trabalhadora das Filipinas em situação de tráfico internacional de pessoas e trabalho análogo à escravidão, mantida presa e explorada por funcionária de alto escalão do consulado dos Emirados Árabes Unidos em São Paulo[20]. Também foi relatada em diversas reportagens a situação de migrantes do comércio ambulante[21] e do mercado artístico-cultural[22], que perderam toda a renda na pandemia. É justamente nesse mercado informal, onde prevalece a precarização do trabalho com direitos escassos, onde grande parte da população migrante encontrava sustento.

 

São diversos os problemas enfrentados por essa população na saga pelo auxílio emergencial, que vão muito além das barreiras com a língua, da divisão digital e do desconhecimento da lei e dos códigos culturais do Brasil[23]. Na prática, o que temos visto é que a política de indocumentação, ou seja o fato do próprio Estado dificultar a regularização migratória, e o acesso às políticas sociais, como o benefício emergencial, é parte da política de invisibilização.

 

Como consequência da escassez de emprego e renda, se tornam mais frequentes os relatos de ameaças de despejos[24] e migrantes em situação de rua[25]. Como parte da política de indocumentação, o racismo de Estado, veneno sobre o qual a sociedade brasileira foi formada, se expressa nas mais diversas formas durante a pandemia. Com relação às pessoas migrantes, está representado nas políticas arbitrárias nas fronteiras e nas ameaças de deportação[26], mas também se desdobra em violências cotidianas como nos  frequentes relatos de discriminação nas agências da Caixa Econômica Federal, na violência policial e criminalização da pobreza[27] e no simbólico esfaqueamento racista e xenófobo do angolano João Manuel, frentista de um posto de gasolina, morto após ser questionado por um brasileiro sobre direito dos migrantes ao auxílio emergencial[28].

FOTO: Thiago Haruo Santos

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Importante lembrar nesse ponto que a Constituição Federal Brasileira e a Lei de Migração (Lei Nº 13.445 de 24 de maio de 2017) no Brasil garantem o direito de igualdade a migrantes no acesso a benefícios assistenciais e aos serviços públicos como escolas e hospitais, independentemente do status migratório - pessoas migrantes com ou sem documentos[29].

 

Mas as conquistas recentes das lutas dos e das migrantes no país estão sob ameaça constante. Se é verdade que a substituição do Estatuto do Estrangeiro por uma nova Lei de Migração (sorrateiramente aprovada com mais de 20 vetos nas mãos do ex-presidente Michel Temer) abre um novo período de disputas jurídicas no reconhecimento de migrantes como sujeitos de direitos, é verdade também que o atual contexto de crise no Brasil implica em limitações políticas bastante significativas para qualquer tipo de avanço em direitos e políticas sociais, já que estamos em um período de profundos retrocessos da história nacional.

Desde que foi aprovada, a Lei de Migração vem sendo alvo de ataques e manifestações racistas e até fascistas, tanto diretamente pelos discursos da extrema direita quanto por projetos de lei e regulamentos que buscam criminalizar a migração e criar mais barreiras à regularização migratória[30].

 

É central, ainda, discutir a discriminação a venezuelanos e os entraves ao visto humanitário impostos nas portarias do governo que regulamentam as fronteiras durante a pandemia (portarias 255/2020; 340/2020; e PORTARIA CC-PR/MJSP/MINFRA/MS Nº 1, DE 29 DE JULHO DE 2020), e que nos colocam a questão: o direito de refúgio está suspenso aos venezuelanos? Qual será o impacto humanitário dessas medidas discriminatórias na pandemia? Servirão de pretexto para impedir o acesso de migrantes a hospitais e ameaçar de deportação, como tem buscado o governo do estado de Roraima para discriminar venezuelanos[31]?

 

 

MOBILIZAÇÕES E SOLIDARIEDADE: PARA ALÉM DO "APAGAR FOGO"

A migração, tanto a interna – como a nordestina e nortista para o sudeste/sul do país – quanto a internacional – como a diáspora africana, incluindo exilados políticos sobretudo das ditaduras da América Latina – fazem parte da formação da sociedade brasileira. Nesse território de conhecimentos vivos por onde chegam e circulam migrantes do mundo todo em busca de trabalho, de refúgio e de afetos, a questão migratória ainda respira a memória de amplos processos de resistência, que reatualiza o campo social, político e cultural mediados pelas lutas das mulheres e dos movimentos negros.

Como chama a atenção a socióloga Patrícia Villén[32], a contribuição dos movimentos migratórios para as lutas sociais no Brasil fica mais evidente no auge dos movimentos grevistas no início do século XX e na formação de espaços coletivos de socialização, apoio e resistência como as Ligas Operárias, Uniões Profissionais, Associações, Sindicatos, Sociedades de Socorro Mútuo, Quilombos, Organizações Anarquistas, Socialistas.

 

Desde esse período, a cidade de São Paulo se destaca como um dos principais centros mundiais da efervescência multicultural, além de ser um espelho de processos sociais globalmente estruturados. Possui o mais importante portão de embarque da América do Sul e continua sendo a zona urbana onde vivem e trabalham a maior quantidade de migrantes internacionais no país.

 

São Paulo tem concentrado, desde o início da pandemia, movimentos de migrantes e grupos solidários ligados a movimentos sociais, coletivos, universidades, Ongs, igrejas, movimentos culturais, que se mobilizam coletivamente e em plataformas digitais para buscar suprir as necessidades mais básicas junto a pessoas migrantes em situação vulnerável (distribuição de cestas básicas; kits de higiene; roupas; ajuda no preenchimento do auxílio emergencial; etc[33]), como também para construir redes mais fortes de solidariedade[34].

 

Durante a pandemia, essas redes de solidariedade, fruto da luta e protagonismo dos próprios migrantes, se desdobraram em três principais ações: luta pela regularização migratória (Campanha #RegularizaçãoJá); combate à invisibilidade (Campanha pela inclusão da nacionalidade nos formulários da COVID-19) e enfrentamento à violência racista e xenofóbica (a exemplo da #CampanhaSomosJoãoManuel), refletindo também as lutas internacionais e antirracistas travadas por migrantes e movimentos sociais pelo mundo.

 

Na esteira da economia política da asfixia social, essas campanhas e lutas que surgem através da organização colaborativa solidária, quando buscam e têm fôlego para ir além do "apagar fogo", ganham importância por demonstrar alternativas possíveis de existência e capacidade de disputa cognitiva frente às violências do Estado e às opressões cotidianas, trazendo esperança para romper com a produção da invisibilização de determinados corpos e culturas historicamente inferiorizados pelo Estado.

 

Nas encruzilhadas da luta coletiva pela vida no novo "anormal" imposto pela pandemia, as campanhas e redes ativas durante essa crise se multiplicam velozmente a partir de múltiplas experiências de vida social em São Paulo, que se propõem a reunir e organizar pessoas e informações em torno de pautas e articulações no campo das migrações que revelam toda uma potencialidade cultural e política para se reinventar modos de vida e quebrar as correntes das múltiplas violências por trás do véu da invisibilidade da presente crise.

* Karina Quintanilha é doutoranda em sociologia pelo IFCH-Unicamp, advogada com especialização em migração e refúgio pela UNLa (Argentina), e pesquisadora-curadora do Fórum Internacional Fontié ki Kwaze - Fronteiras Cruzadas (ECA-USP). É mestra pela PUC-SP com o tema "Migração forçada no capitalismo contemporâneo: trabalho, direitos e resistências no Brasil". É, atualmente, assessora jurídica no Centro de Direitos Humanos e Cidadania dos Imigrantes (CDHIC). Também integra, como pesquisadora responsável pelos trabalhadores migrantes, o projeto de pesquisa COVID-19 COMO DOENÇA RELACIONADA AO TRABLAHO

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