INSTITUTO
WALTER LESER
Saúde coletiva & cidadania
Pandemia
26 de março de 2021
Há um ano
A pandemia chegou ao Brasil nos corpos de homens e mulheres das classes mais altas e matou, primeiro e mais do que tudo, trabalhadoras pobres
Rosana Urbano, primeira vítima da COVID-19 no Brasil
No dia 12 de março, alguns dias antes da morte de Cleonice Gonçalves, faleceu Rosana Urbano, também empregada doméstica. Com 57 anos e um filho com problemas de desenvolvimento, ela havia parado com as faxinas que fazia como diarista para cuidar dele e descobriu que estava doente quando foi ao hospital visitar a mãe, internada com problemas respiratórios. Não voltaria mais para casa. O diagnóstico de que a morte teria sido provocada pelo coronavírus só chegou no final de julho. Entre a morte de Rosana e esse diagnóstico, a filha Thaís conta que a família perdeu outras quatro pessoas – a avó, que estava internada com COVID, mas ninguém sabia. Nem os médicos. O avô – de 92 anos, que segundo a neta, morreu mudo pela tristeza -- e dois tios, irmãos da mãe. “Eu que vesti minha mãe, junto com meu padrasto; fizemos velório para a minha avó”, conta. Sem nenhum cuidado ou proteção. Porque ninguém sabia que era COVID. Nem os médicos. Uma história que, muito mais do que simbólica da pandemia, faz o papel de tornassol para as duras condições de vida das famílias pobres do Brasil. Rosana é, de fato, a primeira vítima da doença no Brasil. Tão invisível que quase ninguém sabe.
Azul de tornassol
No Brasil, com a má distribuição de renda, um grupo muito pequeno de pessoas consegue pagar para que um grupo grande de trabalhadores faça o trabalho que Luana define como “de reprodução da vida” (cuidar, limpar, alimentar e tratar). “Enquanto esse tripé organizar a nossa sociedade, vamos continuar convivendo com o trabalho doméstico como uma ocupação principalmente para mulheres pobres”, diz Luana.
Para Luiza, a forma como o trabalho doméstico é organizado é na verdade, uma questão cultural. “No Brasil as pessoas se habituaram a ter sempre uma trabalhadora na sua residência, para o trabalho de cuidar (da casa, da criança, do idoso), o trabalho de cuidado”, afirma. Ela compara a situação de sua categoria aqui com a que existe entre suas colegas na França. “Sei porque tenho uma conhecida que trabalhou lá. É muito raro que uma trabalhadora converse com sua patroa, tenha, assim, um diálogo amigável. Aqui no Brasil não, temos essa cultura de que o trabalho doméstico é de cuidado. Existe o calor humano. Não é regra geral, porém quando existe esse diálogo e respeito, a tendência é aquela trabalhadora ficar anos no mesmo emprego”, conta. No geral, no entanto, esse “calor humano” nas relações entre a patroa e a empregada termina em mais exploração. “Sempre alerto as minhas companheiras, de que não se confundam, e abram mão de direitos em nome dessa amizade”, alerta.
Para a pesquisadora do IPEA, é preciso que o Estado, as instituições e as empresas assumam parte da responsabilidade do trabalho de reprodução da vida,. “A vida acontece porque existe um trabalho de reprodução social, que é invisibilizado. Alguém cuida, faz a comida, deixa as roupas disponíveis, dá banho, socializa, enfim. A sociedade se reproduzindo. Na grande maioria das culturas essa é uma responsabilidade das famílias, e dentro das famílias, das mulheres”, explica Luana. “Enquanto outras instituições – públicas e privadas – não assumirem parte dessa responsabilidade, enquanto for uma responsabilidade só das famílias, vai continuar existindo espaço para que mulheres que possam pagar, contratem outras para fazer esse trabalho por elas. É uma solução privada para um problema que é público”, conclui.
reconhecimento do vínculo de trabalho. (Mais detalhes, acesse o artigo aqui)
Luiza diz que a sua categoria sempre teve muita visibilidade na mídia e reconhece a existência de avanços importantes nos últimos 20 anos. “É verdade que nós, trabalhadoras domésticas, temos conquistado direitos. Não foi fácil, foi muita luta e sacrifício, mas temos a Convenção 189 da OIT (que exige tratamento igual ao dados aos demais trabalhadores), que completa 10 anos, a PEC das Domésticas, que completa 8 anos e depois a Lei Complementar 150, que faz cinco anos e não foi mexida pela ‘deforma’ trabalhista. Então é um ganho”, diz Luiza, que logo em seguida reclama. “Ela (a lei) existe, mas o respeito é mínimo”.
TRIPÉ DE DESIGUALDADES
O trabalho doméstico no Brasil se sustenta, segundo Luana, em um tripé de desigualdades: a racial (pela origem escravocrata), de gênero (tarefa naturalizada como feminina nas sociedades patriarcais) e de renda. “O que permite que um salário, pague um outro salário”, explica. Nas sociedades mais igualitárias isso não é possível e em geral, esses postos de trabalho acabam sendo ocupados de forma ilegal por imigrantes vindos de países pobres.
Cleonice Gonçalves, primeira vítima fatal de COVID-19 no Rio de Janeiro, em ilustração de Pablito Aguiar para a Elástica. O desenho ilustra uma matéria sobre as mulheres que não puderam parar de trabalhar durante a pandemia.
Há um ano, a pandemia batia por aqui escancarando nossas mais profundas e persistentes mazelas, ao fazer suas primeiras vítimas entre as empregadas domésticas. Cleonice Gonçalves, infectada pela patroa que recém voltara da Itália, então o epicentro da doença, faleceu no dia 22 de março aos 63 anos e tornou-se um ícone da pandemia. “O caso da Cleonice escancarou as desigualdades para o trabalho doméstico e isso nos colocou de volta no foco das discussões em universidades, em programas de rádio e na própria Globo; nos estados muitas companheiras sindicalistas foram procuradas, deram muitas entrevistas para televisão e rádio, fizemos muitas lives”, conta Luiza Batista, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). Uma busca rápida do nome de Cleonice associado à COVID no Google traz mais de 44 mil registros, que incluem citações em estudos, pesquisas, artigos de opinião e também científicos, lives, vídeos e em todas as reportagens feitas para marcar uma data ou fato relacionados à doença.
A vulnerabilidade da categoria, formada em sua maioria por mulheres negras e pobres, no entanto, não mudou. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), em 2018 havia 6 milhões de pessoas ocupadas em serviços domésticos e de cuidado. “No final do ano passado, segundo a PNAD, esse grupo era de 4 milhões de pessoas. Dois milhões de trabalhadoras domésticas perderam a sua ocupação nessa pandemia”, diz Luana Pinheiro, técnica de planejamento e pesquisa da Diretoria de Estudos Sociais (Disoc) do Ipea e uma das autora da Nota Técnica nº 75, Vulnerabilidades das Trabalhadoras Domésticas no Contexto da Pandemia de Covid-19 No Brasil, de junho de 2020.
Quem não perdeu o emprego, se submeteu a explorações ainda maiores do que a usual. “A pandemia não criou esses fatos, eles já existiam antes. Mas ampliou as oportunidades”, diz Luana. A Fenatrad não tem dados, mas Luiza diz que os sindicatos têm recebido muitas denúncias. “É uma questão difícil, as denúncias. Nós até teríamos como encaminhar, mas dificilmente uma trabalhadora concorda em formalizar”, explica. Trabalhando na casa do patrão, numa provável ação judicial elas só teriam a sua palavra contra a do patrão, ou patroa. “Elas ficam com medo de represálias”, diz Luiza.
Mesmo assim, algumas encaram a batalha. Maria Martha Bruno, diretora de conteúdo da Gênero e Número, juntamente com a analista de dados Flávia Bozza Martins fizeram um levantamento das denúncias que chegaram ao Ministério Público do Trabalho (MPT) nos cinco primeiros meses de pandemia, por meio da Lei de Acesso à Informação, para o estudo “Cenários e possibilidades da pandemia desigual em gênero e raça no Brasil”, desenvolvido em parceria com o Instituto Ibirapitanga. Encontraram casos em que um casal, mesmo com sintomas e teste positivo para COVID, obrigaram a empregada a continuar trabalhando; de patroas que compartilhavam máscaras com a empregada ao mandá-la fazer uma compra; de trabalhadoras que, para não serem demitidas, passaram a morar na casa do patrão durante o período de isolamento social; de uma pessoa contratada como babá, mas que com o início da pandemia passou a cozinhar também, sem acréscimo salarial e sem folgas aos domingos e feriados. Além de muitos casos de não recolhimento regular de contribuições; suspensão de contrato sem a suspensão do trabalho (impedindo que a profissional pudesse se manter em isolamento); de não pagamentos de 13º salário e de multas em processos de demissão e até mesmo do não
No Brasil existem 6,2 MILHÕES trabalhadores domésticos, 92% são mulheres, 63% são negras. 38,8% do total contribuem para a Previdência (Pnad Contínua de 2018). 27,8% tem carteira assinada (IBGE) e apenas 1,5% são sindicalizadas. Entre setembro e novembro de 2020: - 24,2% na ocupação em SERVIÇOS DOMÉSTICOS. Só perde para o setor de alojamentos e alimentação, que teve queda de 26,7%