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HOMENAGEM

WALTER LESER,
UM POLÍMATA NAS CIÊNCIAS DA SAÚDE

José Ruben de Alcântara Bonfim

Médico graduado na Faculdade de Medicina do Recife (UFPE - 1973);
Doutor em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da USP (2015);
Médico da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo desde 1976;

atuando no Instituto de Saúde a partir de 1997

MEDALHA WALTER LESER DE GESTÃO EM SAÚDE.png

  Instituída pelo Decreto nº. 53.337, de 21 de agosto de 2008, a Medalha de Honra e Mérito da Gestão Pública em Saúde “Walter Leser”, é destinada a “galardoar pessoas e entidades, nacionais ou estrangeiras que, no campo da gestão pública da saúde, se hajam distinguido de forma notável   ou relevante e tenham contribuído para o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde no Estado de São Paulo - SUS/SP”.[1]

A homenagem foi prestada pela primeira vez, neste mesmo ano, em comemoração aos 20 Anos do SUS no Estado de São Paulo, às seguintes personalidades: Adib Domingos Jatene, Carmen Cecília de Campos Lavras, Eduardo Jorge Martins Alves Sobrinho, Gastão Wagner de Sousa Campos, Gilberto Tanos Natalini, Gonzalo Vecina Neto, José Carlos Seixas, José da Rocha Carvalheiro, José Ênio Servilha Duarte, José da Silva Guedes, Marta Lopes Salomão, Maria Cecília Marchese da Mota Azevedo Corrêa, Nelson Rodrigues dos Santos, Otávio Azevedo Mercadante e Ricardo Oliva.[2]

  Em 2023, quando o SUS completa 35 anos de sua instituição na Constituição Federal de 1988, será concedida, pela segunda vez, a Medalha Walter Leser a outro número de personalidades, assim é oportuno assinalar  aspectos singulares da formação de Walter Sidney Pereira Leser na Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, na 16ª. Turma (1928-1933) e de seu desenvolvimento como docente, pesquisador, médico de análises clínicas, estatístico, administrador de saúde (secretário de saúde de São Paulo em 1967-1971 e 1975-1979) que abrangem grandes contribuições à Higiene, à Medicina Preventiva e Social, à Saúde Pública e ao ensino médico  até sua segunda aposentadoria, em 1980, na Escola Paulista de Medicina, onde foi professor desde o concurso para catedrático de Higiene em 1941.  

  Importa frisar que sua atividade docente não começou na área de saúde, e sim, na Escola de Sociologia e Política de São Paulo (ESPSP), fundada em 1933, cujo primeiro professor de Estatística foi Bruno Rudolfer (1894-1942) que por razões de doença em fins de 1933, não pode ministrá-la no primeiro semestre de 1934. Um dos criadores da ESPSP, Geraldo Horácio de Paula Souza (1889-1951), primeiro catedrático de Higiene da Faculdade de Medicina de São Paulo e primeiro diretor em 1925, do Instituto de Higiene, ligado à faculdade, que em 1931 tornou-se Escola de Higiene e Saúde Pública e com sucessivas transformações depois de incorporada à USP, em 1938, transformando-se em 1945, na Faculdade de Higiene e Saúde Pública e depois Faculdade de Saúde Pública de São Paulo.

  Paula Souza, em 1933, foi um orientador singular informal da tese de doutoramento de Leser, no sexto ano da Faculdade de Medicina de São Paulo, incorporada em janeiro de 1934 à USP como FMUSP. É interessante transcrever um trecho de sua autobiografia que veio a lume postumamente (em 2009)[3], p.29-30

[...] Naquele tempo, era exigida para a formatura uma tese de doutoramento; aliás, a minha turma foi a última a passar por essa absurda exigência. Sugeriu [Paula Souza] então, que eu fizesse uma tese de estatística, ainda que fosse apenas com caráter didático e incluindo alguns exemplos de utilização de métodos estatísticos em biologia. Acrescentou que o Instituto precisava formar alguém para assumir a área de estatística e não havia quem tivesse   condições para isso. Uma vez formado, e com a tese aprovada seria meu o cargo de monitor, para começo da carreira no Instituto. Para facilitar a elaboração da tese, eu ficaria dispensado da [disciplina] inspeção sanitária.

A proposta era mirabolante, mas, honestamente, eu me senti obrigado a dizer ao Professor que ele recebera informação exagerada, porque eu nada sabia de estatística, a não ser o que aprendera nas aulas do curso. Sua resposta foi: “Pois então estude; a biblioteca possui bons livros que trouxemos dos Estados Unidos”. Aleguei que poderiam surgir dificuldades quando não conseguisse entender alguma coisa; não havia  Universidade em São Paulo e, tanto quando supunha, e era verdade, não havia curso algum regular de estatística em São Paulo. Não podia ser mais instigadora a sua resposta: “ Quando isso acontecer, vá para casa, deite, reze e pense; a solução para o problema aparecerá”. Não acreditava muito nessa previsão otimista, mas dei um balanço rápido na minha situação e respondi agradecendo a confiança que ele depositava em mim e concluindo: “vou tentar”.

  O resultado deve ter sido muito além do que imaginara Paula Souza, como se apresenta no frontispício do trabalho: Faculdade de Medicina de São Paulo. Tese de doutoramento de Walter Sidney Pereira Leser, defendida no dia 14 de dezembro de 1933. Dissertação: “Contribuição para o estudo dos métodos estatísticos aplicáveis á medicina e á higiene”. Cadeira de Higiene. Aprovada com grande distinção grau 10, 1933. Estab. Gráfico Cruzeiro do Sul. [229 páginas e Index].

  Seu trabalho de conclusão de curso (nos moldes atuais) a que não são obrigados os médicos, não só foi o trabalho pioneiro no país e possivelmente no mundo (conforme estudos em andamento), uma vez que a estatística médica aplicada a atividade clínica em geral, de reconhecimento internacional, foi desenvolvida especialmente por Sir Austin Bradford Hill (1897-1991), cuja exposição sistemática do tema teve sua primeira edição como Principals of Medical Statistics (London: The Lancet; 1937).

Ressalta Leser no Prefácio de sua tese um aspecto da pesquisa inteiramente válido nos dias de hoje: 

A medicina e a higiene, que se valem todos os dias dos mais variados métodos de investigação, não dispensam os referentes ás estatísticas, necessitando, entretanto para sua boa utilização, de um sólido conhecimento de suas linhas mestras, por parte dos investigadores.

Não é cabível que mantenhamos em relação a tais métodos o critério negativista recusando sem conhecer; muito plausível é a atitude que com frequência encontramos: aceitação integral, conhecimentos nulos, aplicações falsas, como as com que todos os dias deparamos, na análise estatística das questões médicas.

  A raiz da sólida atitude científica que Leser teve durante sua longa vida profissional acredito que se formou na elaboração da tese para obtenção do título de médico, e também na influência de um dos livros do filósofo inglês Sir Bertrand Russel, Sceptical Essays (Ensaios Céticos), lido ainda nos tempos de estudante de medicina, no fim dos anos de 1920, conforme assinalei em homenagem póstuma no centenário Instituto Fleury, em 12 de agosto de 2004[4]. O Professor Leser, disse: “Não creio que qualquer livro tenha tido tamanho impacto no meu pensamento, em toda a minha vida, nem mesmo as outras obras do autor”. Talvez porque Russel tenha dito: “Creio que há mais esperança no progresso da razão e da ciência. Aos poucos os homens virão a perceber que um mundo cujas instituições são baseadas no ódio e na injustiça não têm grandes possibilidades de produzir felicidade”. E ainda observei na Alocução que Russel escreveu este livro em 1928, quando Leser começava a faculdade de medicina. Colhi outra sentença do Prêmio Nobel de Literatura de 1950 (recebido exatamente por este livro): “Em todo este ensaio tenho-me batido pela divulgação da atitude científica. Esta atitude científica é capaz de regenerar a raça humana e dar solução a todos os nossos males”.[5]

  O reconhecimento social das contribuições científicas de Leser foi antecipadamente feito, antes de sua morte, em 15 de julho de 2004, pela ESPSP:[6]

O Instituto Walter Leser foi criado por decisão do Conselho Superior, em 1998, em reconhecimento ao eminente médico, que foi professor de estatística na Escola entre 1934 e 1946. Tem como objetivo introduzir na Escola o tema da saúde pública como objeto de pesquisa e ensino.

[...]Ele [o Instituto] é de repercussão global e, de particular importância no Brasil, que conseguiu construir um sistema de saúde universal, num momento em que outros países vinham reduzindo o papel do Estado em várias áreas, entre elas a da saúde.

É também tema articulado com o campo da sociologia e política, da administração e com a organização e disponibilização de informações, áreas de objeto dos cursos de graduação da Escola.

Para o próximo quinquênio (2021-2025) a proposta é que o Instituto se ocupe de três temas/áreas:

                       1. A saúde na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP)

                       2. Saúde e Trabalho

                       3. A questão ambiental na RMSP e no Brasil.

  No lançamento do livro “Walter Sidney Pereira Leser. Das análises clínicas à medicina preventiva e à saúde pública”, na Faculdade de Saúde Pública da USP, em 21 de dezembro de 2009, os organizadores mencionaram:

Durante quase 60 anos, de 1933 até o início dos anos 1990, o professor Leser explorou muitas veredas especialmente nos campos da Educação e da Saúde, que causaram surpresa pela atualidade de suas ideias, muitas não aplicadas in totum, por exemplo, os critérios de admissão às Escolas Superiores e os requerimentos para se exercer uma profissão de saúde. Muito existe para se analisar quanto ao seu pioneirismo, junto de seus colegas de atividades e de seus discípulos, a saber, no ensino da estatística aplicada à pesquisa de saúde e à pesquisa social, ou no aprendizado da Medicina Preventiva, a relação entre a assistência à pessoa e seu entorno social, a dimensão entre a saúde individual e a coletiva; ou sua preocupação quanto a catástrofe ambiente do planeta, expressa no início dos anos 1970, no artigo Espaçonave Terra, constante desta obra; ou ainda a Reforma Leser da Saúde e suas consequências. Todos estes temas são fontes de inquietação da sociedade paulista e brasileira, e do mundo.[7]

  Também o notável cientista biomédico Isaias Raw (1927- 2022)[8], professor de medicina e reformador do ensino médico, formado na 33ª turma da FMUSP (1945-1950) em depoimento sobre a sua turma, na edição de comemoração dos 100 anos da Faculdade, em 2012, fez referências de sua atuação com Leser:

[...] Para implantar a inovação do ensino das ciências e melhorar a seleção de alunos às vagas existentes, Leser e eu lançamos o vestibular unificado das escolas médicas, criando a Fundação Carlos Chagas e precedeu de algumas décadas o ENEN [Exame Nacional do Ensino Médio]. Uma óbvia consequência de repensar o ensino médico, integrando ciências básicas, as bases da clínica médica e a medicina comunitária, levou a concepção de um curso experimental de medicina, com um hospital de ensino (o HU) [Hospital Universitário da USP], e um centro de saúde onde os estudantes viam a realidade que iriam atender, onde os pacientes não eram “casos interessantes”, mas a população que necessitava de assistência integral. O impacto do curso experimental e na pesquisa com a integração do Departamento de Bioquímica com a das outras faculdades da USP foi tão visível, que o grupo conservador, exigiu sua extinção. Não apenas o HU e o Centro de Saúde escola [Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa] permanecem, mas o modelo, improvisado, disseminou-se pelo País. Sem descartar a pesquisa básica, levou Leser e a mim, enveredar pela saúde pública. Leser foi um dos mais eficazes Secretários de Saúde, e ao combater a epidemia da meningite [meningocócica], universalizou a vacinação. Eu fui ao Butantan, para recuperá-lo e orientar para atender a demanda da Sociedade, tornando-se o maior produtor de imunobiológicos da América Latina, fornecendo a todo pais, através do Ministério da Saúde mais de 150 milhões de doses de vacinas por ano!

  O mais expressivo reconhecimento acadêmico, no Brasil, de quem transformou a Higiene, Medicina Preventiva e Social  e a Saúde Pública em nova concepção desenvolvida pelo pensamento sanitário da América Latina, por quem não está mais entre nós, incluindo Walter Leser[9], foi realizada em 2015, pelos editores convidados Gilberto Hochman e Everardo Duarte Nunes em Ciência & Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), na série Construtores da Saúde Coletiva[10],  que traz reflexões que partiram do pressuposto :

[...] de que a saúde coletiva foi construída historicamente por uma multiplicidade de indivíduos, grupos e instituições em várias áreas do conhecimento e de prática profissional, situados no Brasil e também no exterior. Também compreendemos que esse foi um processo historicamente polifônico e polissêmico que, por isso mesmo, constrange monopólios – sejam eles interpretativos, institucionais ou políticos. Esse entendimento deve incentivar, hoje, um debate aberto sobre o presente e o futuro da saúde da população brasileira.

  Os artigos sobre os intelectuais biografados seguem a ordem de edição do periódico,, precedidos pela apresentação dos editores Gilberto Hochman e Everardo Duarte Nunes (editores convidados): Juan César García (1932-1984); Samuel Barnsley Pessoa (1898-1976); Ricardo Bruno Mendes Gonçalves (1946-1996); Rodolfo dos Santos Mascarenhas (1909- 1979); Maria Cecília Ferro Donnangelo (1940-1983); Izabel dos Santos (1927-2010); Guilherme Rodrigues da Silva (1928-2006); Mário Magalhães da Silveira (1905-1986); Walter Leser (1909-2004); Joaquim Alberto Cardoso de Melo (1936-1993); Giovanni Berlinguer (1924-2015); Maria Cecília Puntel de Almeida (1944-2009); Hernán San Martin (1915-2000).

  Leser foi um pensador da Saúde Pública, um grande ordenador dela, agora reconhecido como um construtor da saúde coletiva, cujas ideias e ações executadas ocorreram antes da instituição do SUS. No momento em que a sociedade paulista conhecerá os novos agraciados com a medalha que leva seu nome, depois de quinze anos da sua primeira ocorrência, é indispensável refletir sobre as novas circunstâncias políticas e sociais, cada vez mais complexas, que surgiram desde a instituição do SUS e no decorrer do marco econômico do neoliberalismo nos anos 1980. Nélson Rodrigues dos Santos, um dos agraciados em 2008 com a Medalha Walter Leser e um dos precursores do SUS, cujo livro síntese amplia estudos feitos desde a instituição do SUS, que editei[11], no qual fez dez reconhecimentos negativos no decurso dos trinta e quatro anos do SUS, que assinalam o insuficiente desenvolvimento do SUS constitucional agravado por desvirtuamentos crescentes nos governos federais recentes, de 2016 a 2018 e de 2019 a 2022.  

            Examine-se dois excertos do livro:

TÓPICO 3 - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS RECONHECIMENTOS NEGATIVOS

1. Os dez reconhecimentos negativos expostos, entre outros, compõem vasto campo de acompanhamentos, análises, estudos, proposições, pesquisas e edições que se desenvolvem desde os anos 1970, ainda na ditadura, iniciadas com o histórico documento cuja versão preliminar feita pelo grupo do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, entre seus integrantes Hesio Cordeiro, discutido por núcleos do CEBES, e apresentado por Sergio Arouca, na Câmara dos Deputados, em 1979: “Democratização e Saúde”48 e, até nossos dias, referido por entidades da Reforma Sanitária Brasileira: CEBES, ABRASCO, ABrES, AMPASA, APSP, Rede Unida, IDISA e outras, em profícuo intercâmbio com a universidade, Fiocruz, IPEA, IBGE e outros. Essa riquíssima e imprescindível produção foi condensada em 2018 e 2019 em números 

especiais das edições49 do CEBES, ABRASCO, CONASS, CONASEMS e outras entidades, voltadas à avaliação dos 30 anos da criação do SUS segundo a Constituição Federal de 1988. Não há como não concluir pela configuração de um “SUS real” que expressa comprovações negativas, na prática, contundentemente hegemônicas sobre o “SUS constitucional e legal” que se tornou universal, mas, quanto à Equidade, Integralidade, Regionalização e mudança do modelo de atenção permanece estacionado em baixíssimos degraus; [págs. 121-122; as referências das notas de rodapé deste excerto não foram transcritas para este artigo]

[ ... ]

Também reconhecemos a clara precedência da hegemonia expressada, tanto implícita como explicitamente pela esfera federal, nos 34 anos pós-constitucionais, na relação de forças do desenvolvimento do SUS: impondo-se frequentemente como política de Estado na sua macroestrutura política e de financiamento que aqui resumimos. Assim, os enfoques e reflexões neste texto referem-se à “macroconjuntura” dos 34 anos, que vemos submeter as “subconjuturas” de cada mandato de governo, suas coligações partidárias e mandatos de ministérios (estes, na Saúde, com duração média de pouco mais de um ano). Em realidade, até 2019, antes da pandemia de Covid-19, a “militância SUS”, desde os trabalhadores de saúde na Atenção Básica e conselhos locais de saúde até os profissionais especialistas em serviços públicos de transplantes de órgãos e tecidos, gestores municipais (CONASEMS/COSEMS), estaduais (CONASS) e federal (Ministério da Saúde), a produção acadêmica de ensino e pesquisa para o SUS, e entidades da sociedade, apesar de contra-hegemônicos, conseguiram o desenvolvimento de estratégias de resistência e avanços possíveis em todos os níveis do sistema, comprovando na prática o acerto das diretrizes constitucionais, e por isso, bandeiras inarredáveis. E mais, cientes em concentrar esforços para a continuidade de avanços possíveis na efetivação do modelo SUS, reconhecendo a faixa estreita diante do volume de serviços prestados, mas, nesses 34 anos, comprovando, na prática, a excelência da política pública constitucional. E assim, impedir ou postergar o seu desmanche e aguardar mudanças civilizatórias pela sociedade, no Estado nacional, efetivamente voltadas para as diretrizes constitucionais. Como se desenvolvem essa faixa estreita nas repercussões da pandemia? [págs 135-136]

  O fenômeno do negacionismo de qualquer natureza é algo muito recente. Fins da década de 1980, interessa sublinhar o negacionismo científico que produziu consequências fatais de grandes dimensões. Simone Petraglia Kropf fez uma consideração muito profunda:

“ O negacionismo científico não deve ser confundido com a enunciação de dúvidas, incertezas e controvérsias legítimas, posto que estes são ingredientes fundamentais da produção e da certificação do conhecimento científico. [... também não deve ser visto como resultado da ignorância, mas, ao contrário, como responsável por produzi-la de modo deliberado. [...] tampouco [é] um conjunto de alegações exóticas e irracionais amplificadas pelas redes sociais. Não se trata de déficit cognitivo ou informacional. [...] se dá por seu caráter intencional e articulado para produzir e disseminar desinformação e dúvidas, por meio de estratégias organizadas com o objetivo de contrariar evidências e alegações consensualmente reconhecidas pela comunidade científica”[12]

  Se o negacionismo científico, especialmente o sanitário, entre outras formas de negacionismo, foi a característica do governo federal de 2019-2022, tendo sido derrotado nas urnas como enuncia o editorial da revista do CEBES, também alerta o editorial para outros aspectos na análise, 

Diante dos desafios que se impõem à efetivação do direito à saúde no Brasil e da democracia, mesmo após a derrota do negacionismo nas urnas, faz-se necessário potencializar espaços de mobilização e participação social, além daqueles formalmente já constituídos, com vistas ao aprofundamento das discussões em torno dos desafios que afetam a realização de direitos. Temas como financiamento do SUS e de outras políticas essenciais para o enfrentamento das desigualdades estruturais na sociedade brasileira, privatização e inclusão de pautas emergentes, como o uso da inteligência artificial no campo da saúde, precisam estar incluídos na agenda da RSB [Reforma Sanitária Brasileira]. [13]   

  Pode-se inferir que impõe-se aos gestores do SUS uma atividade pedagógica continuada, não só para os profissionais de saúde, como especialmente para os usuários do SUS, uma vez que é indispensável a criação e desenvolvimento da atitude científica absorvida por Leser quando ainda estudante de Medicina.

  A herança de um mestre, creio, não deve ser exaltada apenas por sua proficiência e virtude – e Leser as possuía de forma completa – mas ser escrutinada por métodos historiográficos, que considerem o contexto econômico, político, social e da atuação dos serviços de saúde de seu próprio tempo, a fim de que possa se constituir em um legado que propicie o bem-estar da sociedade.


São Paulo 29 de agosto de 2023

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