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Saúde do trabalhador

15 de outubro de 2022

Uso de produtos perigosos está descontrolado no Brasil

Alteração nas normas de segurança e falta de fiscalização promove aumento no número de acidentes e o risco de quem trabalha com estas substâncias

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Lilian Primi

EXPOSIÇÃO PODE LEVAR À MORTE

A maior parte dos acidentes com escape de gases tóxicos acontece nos frigoríficos, onde já fazem parte da rotina dos trabalhadores. As consequências da exposição, segundo o pneumologista Ubiratan de Paula Santos, professor na Faculdade de Medicina da USP, atingem principalmente as vias respiratórias. “Pode irritar os olhos, nariz, garganta e os pulmões e nestes casos, induzir asma ou descompensar pessoas asmáticas que estavam bem; provocar um quadro grave de insuficiência respiratória, que se não atendido de imediato pode gerar uma crise asmática e levar a morte. Pode dar também o que chamamos de pneumonite química, com injúria pulmonar: os pulmões enchem de líquidos, células, proteínas, fazendo um quadro grave de insuficiência respiratória aguda; e deixar fibrose dos pulmões como sequela. Também pode levar à lesão com estenose de traqueia”, explica. Não é possível estabelecer um nível de exposição seguro – mesmo em pequenas quantidades há danos nas vias respiratórias, que ganham importância ao longo do tempo, pela frequência das ocorrências. Segundo Ubiratan, todos os que foram expostos devem ser avaliados em consulta clínica e quem apresentar sintomas, fazer exame de função pulmonar.

O vazamento de gás tóxico em Pontal, no Interior de São Paulo dia quatro de outubro, é o extremo de uma situação que indica um descontrole em curso no uso de produtos perigosos no Brasil, situação que pode ser comparada à tragédia ocorrida com as barragens que se romperam em Minas Gerais em 2015 (Mariana) e 2019 (Brumadinho). A falta de informação sobre o tipo de substância que vazou, e de onde, só é possível se toda a estrutura de vigilância e controle da manipulação destes produtos tiver sido burlada. Ou tenha sido inutilizada.

  Com registros compulsórios e controle desde a produção, venda e transporte até o uso final, parece improvável que as autoridades envolvidas não consigam saber absolutamente nada sobre a fonte da contaminação mesmo dez dias depois. A engenheira química Glória Benazzi, conselheira titular do Conselho Regional de Química da IV Região e assessora técnica de Logística e Assuntos Regulatórios do Sindicato das Indústrias de Produtos Químicos para Fins Industriais e da Petroquímica no Estado de São Paulo (Sinproquim) explica que existem inúmeras normas ABNT para transporte e farta legislação envolvendo Ministério do Trabalho, órgãos ambientais, ANVISA, MAPA, ANP, IBAMA, Conselhos Regionais. Produtos controlados pela Policia Federal, envolve a polícia civil e o Exército; e no caso de radioativos, a CNEN.

 Existem ainda exigências complementares que devem ser cumpridas pelas indústrias, como ter a FISPQ (Ficha de Segurança de Produtos Químicos, com informações técnicas e de orientação em caso de acidente), embalagens com rótulos para orientação dos consumidores e treinamento dos trabalhadores que irão lidar com a substância. Mesmo que o caso de Pontal tenha ocorrido em uma operação clandestina, deveria haver um registro em algum ponto, capaz de apontar uma direção ou indicar a fonte provável.

  Uma semana depois da nuvem tóxica ter matado um morador de Pontal e levado outros 94 para o hospital, apareceu uma espuma nos bueiros da avenida principal do bairro Campos Elíseos, onde houve o acidente, substância e origem também não identificadas até agora. E ainda outras quatro notícias de contaminação com produtos tóxicos em diferentes situações e locais: vazamentos de amônia em dois frigoríficos (no Ave Nova, de Betim, MG e em uma unidade da JBS em Mozarlândia, GO); explosão seguida de incêndio na Luft, distribuidora de adubos e agrotóxicos de Sorriso, no Mato Grosso; e um incêndio na distribuidora de lubrificantes West Brasil, em Piracicaba, no Interior de São Paulo, que teria começado em um caminhão-tanque estacionado no páteo. Alguns dias antes, no final de setembro, os jornais publicaram outros três casos de intoxicação, todas em frigoríficos, com três mortes.

  Um levantamento feito com motores de busca na rede encontrou 34 acidentes, além destes quatro já citados, publicados pela mídia nos últimos dez anos, o que dá uma média de pouco mais de 3 acidentes por ano. A maior parte é de vazamentos de amônia em sistemas de refrigeração de frigoríficos ou laticínios, que pelo número e frequência de ocorrências noticiadas, parece ser algo comum, o que já é muito grave. Porém, ainda mais grave é a existência de casos de mortes de trabalhadores intoxicados pelos gases durante a limpeza das redes sanitárias de frigoríficos, situação amplamente conhecida e evitável. É preciso ainda ressaltar que este levantamento não reflete a realidade, já que reúne apenas o que foi garimpado pelo motor de busca nas publicações de imprensa, que também são parciais.

 

OPÇÃO PELO RISCO

  “Quando a gente vê uma série assim grande de eventos, não se pode reportar apenas a questões técnicas. Tem algo além disso, que é uma opção empresarial, organizacional”, afirma o auditor fiscal do trabalho Luiz Alfredo Scienza, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS).  “É falta de manutenção das instalações”, diz o Secretário-geral da Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores na Indústria de Alimentação da CUT (Contac), José Modelski Júnior. Ele diz que os vazamentos de amônia, que há tempos fazem parte do cotidiano dos trabalhadores em frigoríficos, tem aumentado nos últimos anos. “Normalmente são tubulações aéreas e muitas vezes não tem monitoramento das condições destas instalações”, explica Modelski, que também é presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Alimentação de Serafina Correa (RS).

  O procurador do Ministério Público do Trabalho Leomar Daroncho, que atua na Coordenação do Projeto Frigoríficos (Codemat) diz que falta mesmo fiscalização. “Em 2020 e 2021 as fiscalizações ficaram muito complicadas por restrições da pandemia e também, o número de auditores é menos do que 50% do quadro.  As operações diminuíram muito”, explica. Segundo ele, sem fiscalização, toda a manutenção pode ter sido precarizada por pelo menos 2 anos. Scienza aponta a flexibilização e simplificação das Normas Regulamentadoras (NR), promovida pelo governo atual com a justificativa de reduzir a burocratização e modernizar a máquina do Estado, e que na verdade, retirou obrigações dos empregadores. “A pior alteração ocorreu na NR1,

que é a mãe de todas as normas, inclusive a NR 36, que trata do abate de carne. Aos maus empregadores o que foi concedido? As empresas podem definir os critérios de aceitabilidade dos riscos. Em outras palavras, elas podem dizer que as suas instalações de amônia não oferecem risco, ou oferecem um risco muito baixo, sem obrigatoriamente responder a um critério técnico para isso”, diz. Scienza reclama ainda que este documento impede a ação dos agentes da fiscalização. “Se agentes do Estado, auditor do trabalho como eu, ou o Cerest ou outra instituição, como o Ministério Público, resolver autuar vai encontrar lá na empresa um documento dizendo que aquela instalação está joinha, com risco insignificante”.

NO ESCURO

  Nas estradas paulistas, houve um aumento nos casos de acidentes com produtos perigosos de 16,7% entre 2020 e 2021: foram 939 acidentes e incidentes em 2020 e 1.095 em 2021 segundo os relatórios anuais da Comissão de Estudos e Prevenção de Acidentes no Transporte Rodoviário de Produtos Perigosos do Estado de São Paulo. Nos setores de abate e produção de carne e laticínios, houve aumento na emissão de Comunicação de Acidentes de Trabalho, as CAT, com mortes, de uma média anual de 16 casos - no período de 2016 a 2019 - para 40 óbitos em 2021 – número duas vezes e meia maior - segundo dados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho (SmartLab), mantido pelo MPT em convênio com a OIT. Contraditoriamente, no entanto, houve uma redução no número de acidentes com agentes químicos registrados: em 2021 apareceram 1.799 registros nos setores de Abate (grandes animais, suínos e aves) e Fabricação de Produtos de Carne, o que representa 11% do total das Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT) emitidas neste setor. Em 2020 foram 2.088 e em 2019, 2.312 registros.

 Para os entrevistados nesta reportagem, estes números estão longe da realidade. “O Ministério do Trabalho, num documento chamado Análise de Impacto Regulatório, que se referia a NR 36, admite que há uma subnotificação no setor da ordem de 300%”, conta Leomar. Scienza argumenta que as CATs não servem para medir a incidência. “A CAT, pela natureza dela, previdenciária, de concessão de benefícios, não se destina a ser diagnóstico de incidência ou prevalência de acidentes”, explica. E continua. “Vai aparecer alguma coisa, mas vai ser a pontinha de um iceberg”, avalia e em seguida, explica a contradição entre os registros de morte e acidentes. “Muito provavelmente, e eu já vi isso acontecer, se registram os casos fatais e os não fatais, aqueles em que a pessoa vai pra casa ou hospital e depois volta ao trabalho, não são nem registrados como acidente de trabalho e legalmente são acidentes”, conta.

  Não existe uma ferramenta que monitore de forma eficiente as condições de segurança e saúde dos trabalhadores no Brasil. “Nosso sistema de notificação de agravo de saúde é precário. O que os profissionais fazem é uma salada: com os dados da CAT, Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) e outras fontes de notificação compulsória ou não, e a partir delas fazem ilações e extrapolações de natureza estatística. Temos trabalhos pontuais, como um feito em Botucatu, que demonstra que o número real é cinco ou seis vezes maior em relação ao que está registrado”, informa o auditor.

  Os sindicalistas confirmam o não registro de acidentes quando o resultado não é grave. “O registro é bem pouco. Porque quase não teve vazamento grande, que obrigasse a levar trabalhador para hospital”, conta Eduardo Granado Medeiros, diretor do Sindicato de Alimentação de Criciúma (PR). A empresa não emite a CAT nestes casos. “Eles tentam esconder isso. E é difícil ficar em cima para provar”, diz Eduardo. O Sindicato de Eduardo fez denúncias ao MPT e conseguiu que a empresa fizesse alguns ajustes: foi instalado um sensor para alertar vazamentos e os canos por onde passam a amônia foram diferenciados por meio de pintura com uma cor específica. As denúncias aumentaram a segurança, mas não chegaram a intervir e corrigir problemas e falhas nas instalações, já que a avaliação do nível de risco delas foi entregue aos empregadores. “A gente já tem uma boa tecnologia para trabalhar com substâncias perigosas, tóxicas, mas na vida real a gente vê um certo distanciamento entre essas possibilidades que a técnica nos dá, e aquelas opções que são adotadas, não vou dizer por todos os empresários, mas pelo setor como um todo”, alerta Scienza.

  No cotidiano dos trabalhadores, o resultado dessas opções “de priorização da produção em detrimento de áreas que representam custos, de forma imediata” segundo definição do procurador Leomar, é a convivência forçada com a ameaça de vazamentos ao longo do expediente. Um cotidiano que, no setor de carne e laticínios, é o vivido por 550 mil trabalhadores.

SAIBA MAIS

Documentário "Linha de Desmontagem - pausa para o humano" (2011, 22 min.), dirigido por André Costantin e Daniel Herrera e realizado com apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O filme busca mostrar os benefícios da implementação das pausas durante a jornada de trabalho em frigoríficos avícolas. As pausas de 10 minutos a cada 50 minutos trabalhados foram conquistadas em uma parceria entre MPT, MTE e Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação de Caxias do Sul.

RELATÓRIO ANÁLISE DE IMPACTO REGULATÓRIO - Norma Regulamentadora N° 36 - Segurança e Saúde no Trabalho em empresas de abate e processamento de carnes e derivados

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