
INSTITUTO
WALTER LESER
Saúde coletiva & cidadania
Pandemia
22 de junho de 2020
O anjo nosso nessa pandemia vai entrar em greve
Na mesma medida que os entregadores foram transformados em anjos no cotidiano de todos nós pela necessidade de isolamento social, a atividade tornou-se a primeira - ou às vezes a única - corda disponível para quem se afoga na crise.


Por traz dos aplicativos
O Ministério Público do Trabalho está produzindo essa série - Por Traz dos Aplicativos, em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e com o Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa). São cinco vídeos ao todo com depoimentos de entregadores de São Paulo e de Fortaleza. Eles estão organizados em uma playlist no nosso canal do Youtube e pode ser vista também no Instagran do MPT. O MPT também publicou a Portaria CVS-13, que regulamenta medidas de proteção aos entregadores de mercadorias, incluindo aqueles que prestam serviços para plataformas digitais. A normativa é o resultado de uma atuação do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Campinas, em conjunto com integrantes da Força-tarefa da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), criada para combater o coronavírus.
Sobre a situação dos trabalhadores X ganhos das empresas: O Sindmoto está divulgando um livro escrito pela advogada Rosemeire Gelcer, Motofretistas e APPs de Delivery - Quem Carrega esse Baú?, à venda na Amazon por R$ 30,00
Para saber mais
SOBRE OS ALGORÍTMICOS DE GERENCIAMENTO:
Ludmila Abílio tem um artigo a respeito dessa nova forma de organização do trabalho, que vem sendo chamada genericamente de “uberização” e que não se refere especificamente ao trabalho na plataforma da Uber, mas uma apropriação e exploração controlada do viver periférico pelo capitalismo: “A real vida loka do trabalhador motoboy hoje está subsumida, controlada e gerenciada por algumas poucas.”
O QUE PROPÕEM OS JURISTAS DO TRABALHO:
O procurador do Trabalho Renan Bernardi Kalil defende a criação de uma legislação especial circunscrita ao crowdwork e ao trabalho sob demanda por meio de aplicativos: “Nela, os trabalhadores são classificados em três categorias: autônomos, dependentes ou subordinados, em que cada uma atrai um conjunto de direitos.”
SOBRE A UBER:
Estudo de caso de Alex Rosemblat e Luke Stark, Algorithmic Labor and Information Asymmetries: A Case Study of Uber’s Drivers, sobre as regras da Uber, com depoimentos de motoristas. Alex Rosemblat é também autor de Uberland, How Algorithms Are Rewriting the Rules of Work, livro sobre as plataformas virtuais de trabalho que se tornou um bestseller internacional.
Os entregadores de aplicativos como Loggi, IFood e Rappi estão trabalhando mais, ganhando menos e com riscos maiores, apesar do aumento visível na demanda provocada pelo enfrentamento da pandemia, e se preparam para uma greve geral marcada para 1º de julho. Será a primeira tentativa de uma manifestação nacional depois de alguns movimentos localizados, de reação às más condições e ao risco de contágio pelo coronavírus.
“Surgiram manifestações dispersas em várias cidades, com pauta muito clara, pelo fim dos desligamentos e por condições melhores de trabalho, e ainda contra as novas formas de controle criadas em plena pandemia”, diz a socióloga Ludmila Abílio, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Cesit/Unicamp) e uma das coordenadoras de um estudo envolvendo várias instituições, que investigou, por meio de um questionário online válido para todo Brasil, em que condições esses profissionais estão trabalhando.
As descobertas comprovam as denúncias dos entregadores sobre piora das condições de trabalho e levantam dúvidas se a razão real dessa piora é exclusivamente a pandemia: as jornadas continuam muito longas, acima de 9 horas em média, e houve um aumento significativo da porcentagem de trabalhadores que ganham menos, entre R$ 130,00 e R$ 520,00 por semana. Na faixa com ganhos de até R$ 260,00 por semana (aproximadamente, R$ 1.040,00 mensais), por exemplo, o número de entregadores praticamente dobrou: no universo dos que responderam ao questionário, antes da pandemia eram 17,8% e agora, são 34,4% dos entrevistados. A situação se inverte nas faixas mais altas (entre R$ 521,00 e R$ 1041,00 por semana). “Realmente teve uma queda geral de remuneração e não tem muito como contestar isso. E tem muito a ver com as bonificações. Mais da metade dos trabalhadores dizem que elas permaneceram as mesmas ou foram retiradas”, afirma.
Ludmila conta que havia um grupo de pesquisadores que já estava trabalhando em um questionário para os entregadores quando a pandemia chegou. “A gente pensou que nesse momento, era preciso ver como está o trabalho dos entregadores por que eles estão desempenhando hoje uma atividade essencial para a população. Sabemos que as empresas de aplicativo com certeza estão tendo ganhos muito maiores”, diz a pesquisadora. Não há informações públicas sobre número de pessoas trabalhando nessas plataformas, nem quanto a atividade rende para as empresas. Apenas a Rappi divulgou em entrevistas à imprensa, que teve um aumento médio de 30% nas entregas. A ideia do questionário era saber se esse ganho estava se traduzindo nas condições de trabalho, e assim, levantou
questões como bonificações, formas de proteção, remuneração e tempo de trabalho.
Caixa preta algorítmica
Ludmila estuda especificamente os algoritmos de gerenciamento e diz que a redução ou suspensão das bonificações que apareceu na pesquisa é um sinal de que a diminuição nos ganhos e o aumento de horas trabalhadas podem não estar relacionadas exclusivamente às leis de mercado, de oferta e demanda - uma das justificativas é de que com a pandemia, há um número muito maior de trabalhadores na plataforma, dividindo as tarefas que não teriam aumentado o suficiente para absorver todos eles. “Não entramos nesse tipo de discussão nesta pesquisa, mas o que é importante salientar em relação ao trabalho por aplicativo é que a relação entre quanto você ganha e a quantidade de trabalho não é assim (definida pela relação entre procura e oferta)”, diz.
A pesquisadora explica que são os algoritmos de gerenciamento que determinam os critérios de distribuição de tarefas e valores pagos e que criam uma espécie de ranking, em que os entregadores vão marcando ou perdendo pontos, e que as regras dessa pontuação não são claras. “O trabalhador que fica 12 horas trabalhando, na verdade parte desse tempo ele gasta em busca da corrida, fica rodando e não tem o menor controle sobre isso. E ele também não tem controle sobre valores. Vai mudando de motoboy para motoboy e esses critérios não estão claros. A gente vem falando de caixa preta algorítmica, que precisa ser aberta”, afirma.
A grande dificuldade da pesquisa, e também dos auditores fiscais e procuradores do trabalho responsáveis por fiscalizar as condições de trabalho no país, é que os dados que alimentam esses algoritmos são cambiantes. “Essas regras vão mudando e é preciso pensar que as estratégias dos trabalhadores para lidar com elas também são transformadas em dados. É um sistema de retroalimentação”, explica Ludmila. Até o momento, as empresas têm conseguido evitar abrir seus arquivos, mesmo quando obrigadas pela Justiça. Ludmila diz que os pesquisadores, aqui no Brasil e também no mundo todo, tentam entender a situação estudando a experiência dos entregadores.
Não é possível saber se a greve marcada para o dia primeiro do próximo mês vai acontecer realmente e se acontecer, terá relevância. Em São Paulo há apenas um sindicato organizado no Estado, o Sindmoto, que reúne os motoboys, mensageiros, ciclistas e mototaxistas intermunicipais e na maior parte do país, a organização é feita pelas redes sociais de forma dispersa. “São as novas formas de organização. Os trabalhadores estão correndo muito risco e estão vendo as suas condições de trabalho piorar. Precisam se organizar”, diz a pesquisadora.